Partimos à mesma hora que a noite parte e dá lugar ao dia. O sol espreguiça-se entre as nuvens enquanto eu retiro os restos de sono dos olhos, do espírito.
Fechei a mala tchap, tchap - como quem diz “Rápido!” na gíria moçambicana -, e seguimos viagem. A carrinha de barriga cheia e nós esfomeados de estrada. Saímos de Maputo na direcção de Marracuene pela N1; o destino está distante, ainda.
O sol viaja connosco, está do meu lado direito a contar-me os segredos do sonho. O laranja reflecte-se dançando nas pequenas ondas do mar.
Neste sonho que vivo, não se dorme. Passaram-se 30 anos da última vez que pisei esta terra - a terra dos meus pais, da minha avó Idalina. A origem da história e estórias da minha família, a origem dos sonhos de criança dos meus pais, onde o caju e a manga são mato, onde nasceram as minhas palavras, muito antes da minha existência.
Sou mais novo que as minhas palavras.
Passamos gingando os buracos no chão: “É a terra a respirar”, diz Sulemane. Parámos na Macia, distrito de Bilene, a minha mamana ainda se lembra que ali, numa rua-contra-rua, se cozinha o pão onde as bagias se deitam. Uma paragem necessária para encher o tanque das nossas barrigas vazias com a tradição de quem anda na estrada.
Dou uma caminhada pela vila, esticando as pernas. Agradeço a esta terra que piso. Dou uma pequena volta ao quarteirão, o cheiro de pão perfuma o ar, vendedores de alface e batata-doce dão o “bom dia”; eu retribuo. Ao caminhar, dou-me de frente com duas estátuas de ébano, pau preto, escultura que se ergueu denotando as pernas esguias, tronco e braços finos feito com mestria rara. São-me familiares, cumprimento-as. Sulemane dá sinal e nós voltamos ao chapa. O destino está distante, ainda.
“Muita pressão, Tire um intervalo, Recupere as forças, Desfrute o momento”, slogan do Pall Mall azul que termino de fumar.
Cruzamos o sul, atravessando Gaza para a província de Inhambane: vários mercados de rua, patrocínio colonizador da 2M, myloves - nome contemporâneo para os machibombos que transbordam de pessoas que se abraçam para não cair -, alguns acidentes, muito policiamento atento a movimentos da população. Estamos na falésia de um abismo regido por uma democracia de fachada.
Na estrada nacional paga-se portagem, mas nem aqui se descora de um “bom dia” sorridente e uma troca de palavras amigas. Fala-se com a voz do povo, fortalecendo as raízes e extraindo a urgência de uma mudança.
Chegámos à cidade de Inhambane, oito horas de estrada com algumas paragens técnicas e necessárias. Fomos ao “O Tuga” que nos aconselhou um arroz de pato - “isso de pato temos lá na terra” -, a nossa fome é de camarão e casquinhas de caranguejo, partilhamos uma Manica, afilhada corpulenta da 2M.
De barriga cheia de saudade moribunda voltamos ao chapa para correr os últimos 14km. Vemos o mar, os coqueiros e o nosso primeiro destino: Tofo.
O ambiente é de festa, como todos os Domingos, cheiro de churrasco, música alta do bar, do carro, da barraca, do bar Telio, do Moisés, do Mercado do peixe, do bar do Arcenio, a vender cerveja, cidra, espirituosas, espetadas, peixe, roupa, cana de açucar.
Estamos instalados, cansados mas felizes, a muda de roupa é um calção de banho e um mergulho no índico quente e gracioso. Só depois encomendamos a garoupa, a lagosta, o caranguejo - amanhã promete.
A festa popular começou a terminar e as pessoas dispersavam. O meu corpo já deu sinal de desligamento.
Acordo com o sol, o meu companheiro de viagem, confidente dos meus pensamentos. Pequeno-almoço: meia papaia e um Ricoffy - café solúvel açucarado. Os outros ainda dormem. Aproveito para passear pela praia, molhar os pés, salgar a mente. Caminho pelos pensamentos que me afastam do mundo, deixando-os a cada pegada na areia.
O mar está calmo, tento caminhar devagar para não o acordar. Sinto a frescura da noite na areia clara e fina. No meu interior uma brisa limpa-me de quem sou e vou. Caminho até que o tempo deixa de ter razão.
Desvio-me da praia por uma estrada de terra vermelha, do meu lado as mamanas olham-me enquanto cumprimento-as com um aceno. Oiço o cantar dos pássaros como se fosse a música do meu corpo. Duas crianças correm até mim, um sorriso largo e poderoso, um olho grande, agarram-me pela mão e levam-me por um caminho estreito entre o palmar. Levam-me pelas suas mãos pequenas e inocentes.
Quando parámos, não sei quanto tinha caminhado, confiei naqueles pequenos guias que agora me empurravam pelas costas como se empurrassem uma montanha; riam-se tanto que o ar lhes faltava. Era a brincadeira deles e quanto mais pesado me fazia mais os ouvia rir. Senti as mãos deles desaparecerem das minhas costas; quando me virei para trás não estava ninguém, apenas o caminho estreito e o cantar dos pássaros.
À minha frente, duas cabeças esculpidas em ébano preto brilhante. "De onde conheço estas estátuas?", pergunto-me. Um assobio rasga o ar da minha dúvida, reconheço a melodia, mas não a identifico.
O caminho leva-me a um portão reformado do seu ofício, enferrujado; ao fundo uma palhota e as duas estátuas agora inteiras, impunes, esguias, convidativas.
Um velho, magro, aproxima-se demoradamente: reconheço o pouco cabelo branco, as costas curvadas, as pernas arqueadas finas, a bengala esculpida. – David, como estás? – perguntou-me. Eu estou incrédulo, a boca entreaberta, o meu corpo imóvel. É Justino.
Convidou-me para beber um chá, quando entrávamos na palhota eu mesmo fui buscar o capim-limão que sabia onde estava. A rede ao canto mais fresco da palhota, as lascas da madeira cortada junto a um banco, a faca. A panela de ferro sobre as cinzas apagadas.
Continuava de pé, a olhar em volta; Justino estava sentado com um sorriso suspeito de quem vive dentro da minha cabeça. Tentei começar algumas frases, mas a garganta estava seca, as palavras presas. Justino passou-me a caneca de chá, o cheiro do capim humedeceu-me por dentro, reconfortou-me. Embora tudo me parecesse muito irreal, não estava em perigo; estava no meu espaço, na minha escrita, na palhota que eu também conheço.
Justino respeitou o meu tempo, agora era eu que me demorava. Bebia um gole do meu chá, os meus óculos embaciavam com o vapor. Sorríamos juntos. Como se tudo fosse uma longa conversa. Um diálogo harmonioso de silêncio. – Anda, vamos ver o poço! – mais uma vez Justino parecia ler os meus pensamentos. Ao sair da palhota, repeti o movimento que tanto escrevi agarrando um pau de ebanácea empregando-o de bengala. Arrastei-o pelo chão namorando tudo o que via e percebendo que tudo era criação minha, a minha cabeça, as minhas palavras. Seguia Justino, mas não precisava, eu conhecia o caminho.
Olhei para trás como quem quer certificar-se o risco deixado pela minha bengala, mas não era um risco, mas a palavra “risco” escrita na terra. Parei. Levantei a bengala, olhei a ponta e fiz de novo um risco mais pequeno no chão: “risco” em letras menores, letra a letra, escrita. Não via a cara de Justino mas sabia que ele ria, os ombros riam na ausência do rosto. Questionava-me, ainda sem perceber muito bem: poderiam ser paus mágicos, algo que ainda estava por escrever? será que, ali, iria ouvir mais histórias de Justino? será que o ia conhecer melhor? será que não é Justino mas as bengalas? as perguntas deambulavam.
Queria ir ver o poço, e segui-o, terei tempo de questionar tudo isso. A bengala deixou de ser bengala, mas levei-a comigo: Justino era o meu guia.
O caminho até ao poço era mais longo do que imaginava.
Aproximei-me do poço, as roldanas enferrujadas, a corda grossa e fibrosa, o balde, tudo ali. Quanto mais me aproximava, mais me apercebia que cada pedra que jazia naquele túnel vertical não era uma pedra, mas a repetição de uma só palavra: “pedra”, tão pequenas, tão juntas, tão compactadas que de longe formavam uma pedra. Olho-o, curioso – Tudo o que escreves eu guardo, continua. Eu estou em silêncio, todas as palavras têm o seu sítio aqui.
Espreito o poço por dentro, tudo parecia real, as pedras, a água, a profundidade, mas olhando com mais atenção conseguia ler as palavras: pedra, profundidade, musgo, água; a água balanceando os reflexos de luz, a minha sombra ao fundo. – Se tudo é feito com as minhas palavras, o que é real, aqui? – pergunto-lhe. – Aqui, tanto és criador como criatura. Tudo pode ser e pode não ser. Se queres ver as tuas palavras, vais ver, se queres vivê-las basta viver – diz Justino. – Mas isto está a acontecer? Eu estou mesmo aqui contigo?
Convidou-me a sentar com ele, na sombra de uma árvore, perto do caminho para o cemitério – Como está a estatueta do teu pai? – pergunto. – Cresce... vejo que andas a projectar algo, conta-me!
Justino deixa um silêncio nas suas palavras, fala pausadamente, com tempo que me traz paz e me acalma – Eu conto que sejas tu a contar-me o que vai acontecer – respondo. – Anda, vem ver a estatueta que eu criei com as tuas palavras, vem ver o meu pai que mataste, vem ver o cemitério bonito da tua imaginação. Aquelas palavras foram duras para mim – Desculpa, Justino, não queria... – Quiseste e está tudo bem. – És tu o protagonista da minha história, mas precisei dar-te história. – “Sou o último coveiro, todos os dias me desenterro”. Encarei-o com surpresa – Esses versos pertencem a Adriano Santiago, um personagem de Mia Couto. também lês os livros que eu leio? Ele riu – Não, eu só guardo as tuas palavras.
Neste pequeno diálogo, caminhámos até ao cemitério. Era de facto muito bonito. A entrada era com um portão gémeo do da casa de Justino, pensei: falta de originalidade, David. As campas não tinham uma ordem, mas todo o cemitério era uma floresta plantada.
De cada campa uma planta crescia. Justino e o seu pai (e eu) plantavam uma semente e uma planta alimentava-se das memórias de quem ali descansava a eternidade. Havia árvores de fruto, plantas ornamentais, cactos e até bonsais, pensei: aquele deve ser japonês. Ri-me sozinho, mas Justino ria comigo. Ele sabia o que eu pensava.
De perto encontrava pequenas frases que se escondiam nos troncos, nas folhas, no fruto – Parece-me que são projectos meus que foram morrendo. Justino responde com doçura – Isto são projectos que estão ainda a crescer –dando um pequeno toque numa manga ainda verde que ficou a balançar – Não é o fim, mas um início. as tuas palavras são vivas, eu sou a prova disso.
Quando chegámos à campa do pai, um assobio soprava pela escultura. Estava maior do que aquela que Justino esculpira, que eu escrevera; olhei-a de perto e encontrei as palavras, “aqui tudo cresce”. – Decidiste que vai crescer, mas o que vem daí? – perguntou-me. – Estou à procura de respostas, quero ver, com os meus olhos, como realmente é este teu mundo. – É teu, David. – É nosso, meu caro. eu ainda não sei, mas quero que cresça. ajuda-me a encontrar essa história.
O olhar de Justino estava longe, pensativo. A campa do pai era a última; em volta, uma floresta. Contemplávamos aquela paisagem bucólica.
Voltámos pouco tempo depois, fizemos o caminho até à palhota: o poço, a plantação de maçaroca, as galinhas, as palmeiras carregadas de coco, o risco, as minhas palavras, “risco” escrito no chão. – A vida é um risco, arrisca na vida – disse-me.
Olhei para Justino que me devolveu o olhar com um sorriso. Ali estávamos, dois confidentes, irmãos de silêncio. Nos olhos dele, encontrei a resposta a todas as perguntas que nunca cheguei a fazer.
Ao distanciar-me, olho uma última vez para ele encostado a uma das estátuas que segura o portal da nossa confidência. A nossa história não termina, é apenas o início. Não olho mais para trás.
No caminho de volta, pensava em Justino, perguntava-me se seria um ser vivo, um ser escrito ou um ser eu. A minha própria autoficção.
Quando senti a areia húmida da praia, sabia que estava a chegar. Namorei as ondas que apagavam as minhas pegadas e alisavam o chão ainda por pisar.
Ao chegar, todos tomavam o pequeno-almoço na varanda da casa de Dona Ginga na praia dos sonâmbulos, no Tofo. Ainda seguro a bengala de Justino, faço um risco no chão. É apenas um risco no chão, nenhuma palavra. E, sorrio, abro o portão e sento-me com eles.