Ele apareceu num sábado de manhã. Eu havia casado há uns dois meses e morava de modo provisório num apartamento de veraneio da família em Petrópolis, enquanto aguardava a conclusão das obras da minha casa definitiva no Rio de Janeiro. Interessante que era um imóvel de veraneio ao contrário, já que usávamos para escapar do verão do Rio de Janeiro.
Ficava num local tranquilo, um condomínio fechado quase sem movimento, exceto dos próprios veranistas, todos em busca de noites frescas e silenciosas. Ali se podia dormir sem trancar a porta de casa nem do carro. Já frequentávamos o lugar há mais de 15 anos e nunca ouvimos falar de qualquer ocorrência que gerasse insegurança. Ou seja, um oásis de tranquilidade e frescor a apenas uma hora da selva tropical do Rio de Janeiro.
A nossa porta não tinha campainha. E também não tinha olho mágico, como as portas de todas as casas das novelas da televisão. Com as costas dos dedos ele deu umas três batidas leves. Eu estava ali na sala e, sem nenhum sobressalto ou preocupação, abri logo a porta.
Achei que seria algum vizinho, mas me deparei com um garoto de uns 10 ou 12 anos. Olhei para ele com simpatia. Usava uma camisa xadrez de botões, com o colarinho meio puído e uma calça azul surrada. Nos pés um sapato de lona com uma sola de borracha encardida, que um dia havia sido branca. Era lourinho, de cabelos lisos e uma franja cobrindo a testa, com olhos vivos e sardas nas bochechas.
— Bom dia! O senhor tem algum serviço para mim?
— Serviço? — repeti, entre surpreso e embaraçado.
— É. Eu faço qualquer coisa: posso lavar os banheiros, limpar os vidros, varrer a casa…
— Como é o seu nome?
— Newton.
— Entra um pouco, Newton — disse eu para ganhar tempo e buscar uma resposta cabível para aquela oferta de trabalho infantil.
Ele limpou os pés várias vezes no capacho e, muito timidamente, entrou em casa. A educação, o jeito de falar e a vivacidade do olhar de Newton me conquistaram logo naquele primeiro contato.
Eu não sabia o que fazer. Nossos finais de semana incluíam mesmo a faxina da casa, mas aquele menino não podia fazer as funções de uma empregada doméstica. Ao mesmo tempo, uma criança bater de porta em porta em busca de algum trabalho era sinal de muita necessidade.
Minha mulher chegou e a timidez de Newton se multiplicou:
— Este é o Newton — apresentei-o.
Ele deu um leve sorriso e apressou-se em dizer:
— Eu posso lavar os banheiros, limpar os vidros, varrer a casa… — repetiu, revelando ser uma frase pronta a ser declamada em cada porta.
Minha mulher me olhou, como se eu já tivesse a resposta que ainda estava buscando. Mudei o assunto:
— Você já tomou café, Newton? — perguntei, para ganhar tempo.
— Já sim senhor. Pode me dar alguma coisa para fazer. Quero trabalhar!
— Eu não posso. Quero te ajudar, mas você é uma criança e lugar de criança é na escola.
— Eu estou na escola, mas hoje é sábado. Não tem aula — respondeu ele, sem vacilar, desmontando meu argumento.
— Pois é. Então você devia estar brincando, jogando futebol, descansando, fazendo o dever de casa.
— Não dá. Eu tenho que ajudar minha mãe e meus três irmãos pequenos.
— Você é o mais velho?
— Sim.
— E foi a sua mãe que mandou você bater de porta em porta?
— Não senhor. Fui eu mesmo — disse, com certo orgulho.
— E quando você começou a fazer estes serviços?
— Não comecei, não senhor. A primeira porta que bati foi a sua.
Ai meu Deus! O que vou fazer com este garoto encantador, puro, educado e precisando de ajuda? Posso varrer a casa, limpar os vidros, lavar o banheiro… Esse era o projeto dele. As três leis de Newton!
Eu tinha que encontrar uma saída. Pensei que apenas dar um dinheiro a ele ou alguns alimentos iria ser o fracasso do seu plano. Ele precisava levar para casa o fruto do seu esforço, o dinheiro ganho e não dado, o recurso conquistado com regularidade e não uma doação ocasional. “Quero trabalhar” ressoava na minha cabeça.
De repente me veio uma ideia e aderi, até porque era a única que tinha:
— Newton, eu ia lavar o carro. Está muito sujo. Você pode me ajudar?
— Sim senhor — respondeu animado, percebendo que seu projeto caminhava para se concretizar.
O ânimo dele me fez pensar que poderia ser uma boa ideia mesmo, afinal todo garoto gosta de carro.
— Então pega aquele balde e vamos lá — propus.
Fomos pelo corredor, eu e meu novo amigo.
Ele estava eufórico e foi tagarelando pelo corredor. Ia dizendo que nunca havia lavado um carro, mas que bastava eu explicar e teria o carro mais limpo de Petrópolis em pouco tempo. Garantido! E olhava para mim, entusiasmado. Estava acostumado a limpar tudo em casa. A mãe precisava se dedicar a cozinhar, lavar e passar roupas e cuidar dos mais novinhos, mas na limpeza ele era muito bom. Tinha força para esfregar. Olha o braço, como é grosso! Muita força. Garantido! Olhava-me de novo. Ficava tudo brilhando e cheiroso. Meu carro, depois da limpeza que ele ia fazer, ficaria mais limpo do que quando saiu da loja. Garantido! Com certeza eu ficaria muito satisfeito e nunca mais pediria a outra pessoa para lavar o carro. Era capaz de querer que toda semana ele repetisse aquela lavagem. Claro, porque ia lavar por fora e por dentro, sem deixar uma poeirinha…
Mostrei a ele o ponto d’água próximo ao carro e instruí que primeiro deveríamos fazer a limpeza externa, molhando o carro com a mangueira. Ele tirou os sapatos, arregaçou as calças e entregou-se à tarefa. Adorou! Ficou regando o carro como a uma planta sedenta.
Utilizei então os três verbos da frase decorada por ele, para fazê-lo sentir que estava realizando exatamente o que programou: lavar o carro, limpar os vidros e varrer os tapetes.
Ficamos juntos, dividindo as tarefas e Newton fazia tudo com muito capricho. A todo momento tinha uma pergunta ou um comentário. Queria saber se estava bom, avisava que já tinha enxugado, garantido… Se podia abrir a porta, se podia fechar a porta, como ligava o rádio, se podia sentar no banco, abrir o porta-luvas, se os vidros estavam brilhando, garantido…
Fiquei com a sensação de que ele nunca havia entrado num carro. Terminada a tarefa eu disse a ele: — Ficou ótimo. Traz o balde.
— O que vamos fazer agora? Limpar a casa?
— Não. A casa está limpa, o carro é que estava sujo. Nós vamos almoçar.
No caminho de volta ele virava a cabeça para olhar o carro a cada dez passos, orgulhoso do trabalho realizado.
Guardado o balde e após lavar as mãos sentamos para o almoço. A timidez já fazia parte do passado. Newton agora estava à vontade. Comeu como um adulto. Pela voracidade com que se entregou ao prato feito pela minha mulher, tive certeza de que não havia tomado café da manhã.
— Qual a comida que você mais gosta, Newton? — perguntou ela.
— Frango. Eu adoro frango. Lá em casa quando tem frango para mim é um dia de festa. Mas nem sempre tem frango, pois somos muitos e gastamos muita comida. As crianças comem demais, frango então… – respondeu ele, excluindo-se da classe infantil.
Após o almoço, considerei encerrado o dia de trabalho. Dei-lhe um dinheiro e uma sacola com alguns alimentos. Na despedida ele me olhou, agradeceu e estendeu a mão para um aperto de despedida. Eu tive vontade de abraçá-lo, mas era um trabalho profissional, um projeto que se realizava e tinha que ser formal.
— Posso vir sábado que vem de novo?
— Claro. O carro suja muito indo todo dia para o Rio de Janeiro.
— Eu disse que o senhor não ia querer outra pessoa para limpar o carro. Garantido! — afirmou orgulhoso. — E não quero mesmo. Muito obrigado e até sábado!
Ele partiu saltitante. Passamos a semana pensando no Newton e aguardamos o sábado com expectativa. Com a declaração de amor dele pelo frango, minha mulher resolveu fazer um prato português, onde a ave é cozida com grão de bico num caldo refogado e servida em panela de ferro, acompanhada de arroz branco. No sábado de manhã, ouvi as três batidas leves na porta e meu coração se alegrou: ele veio. Garantido!
Desta vez aceitou tomar café e estava ainda mais conversador. Não resisti e perguntei de repente:
— E o seu pai, Newton?
— Não sei dele, não senhor. Já terminei. Vamos para o carro?
Lembrei uma frase de Freud, que indicava a proteção de um pai como a maior necessidade da infância. Decidi que nunca mais voltaria a este assunto, a menos que fosse iniciativa dele, o que nunca ocorreu.
Para a lavagem do carro eu havia comprado um líquido para passar nos pneus e deixá-los pretos e brilhantes. Newton ficou encantado! Seus olhinhos brilhavam mais que os pneus. Passava o líquido e afastava-se para olhar de longe. Voltava e preenchia um pontinho que havia ficado sem brilho. Afastava-se novamente. Aquele foi o ponto alto da limpeza.
Programei para na semana seguinte adquirir um limpa-vidros automotivo. E na outra um polidor para os para-choques. Pensei também que podia ensiná-lo a colocar água no reservatório do para-brisas. E fui fazendo planos para ver aqueles olhinhos ficarem alegres e aquele peito estufado de orgulho. Garantido!
O almoço foi um espetáculo à parte. Quando a panela veio para a mesa minha mulher anunciou:
— É frango, Newton. Com grão de bico. Você gosta?
— Frango eu gosto. Grão de bico eu não sei o que é…
Feito o prato, o nosso convidado esperou nos servirmos e deu a primeira garfada:
— Nossa! É muito bom! Bom mesmo.
Dali para frente fez silêncio e dedicou-se ao desfrute da comida. Acabou antes de nós e ficou olhando, ora para mim, ora para minha mulher.
— Quer mais?
— É…
Bateu o segundo prato com o mesmo ímpeto do primeiro.
Na hora de ir embora, despediu-se com o formal aperto de mão. Já ia saindo, mas voltou o rosto e disse à minha mulher:
— Foi a melhor coisa que eu já comi na minha vida!
Ficamos emocionados. Ele partiu naquele passinho saltitante.
Newton frequentou a nossa casa por umas cinco semanas e cada vez a gente gostava mais dele. Aquelas três batidas na porta aos sábados já eram aguardadas com expectativa e o almoço era sempre planejado pensando nele.
Até que num sábado a porta permaneceu silenciosa a manhã toda.
Estranhamos e virou motivo de certa preocupação. No outro sábado também não veio. E até o dia em que fomos embora para a nossa residência definitiva no Rio de Janeiro, Newton não apareceu mais. Foi-se sem deixar rastro, mas ficou um carro sujo e dois corações vazios…
Nunca perguntei onde ele morava, falha imperdoável que me impossibilitou de procurá-lo, saber o que ocorreu, como estava, se precisava de ajuda. Que oportunidade perdida.
Isto tudo foi há uns 40 anos, mas nunca consegui esquecer dele.
Faço esta crônica como um náufrago que lança uma garrafa no oceano com um bilhete dentro, na esperança que chegue a alguém. Quem sabe neste mar virtual em que a crônica vai navegar, possa acabar sob os olhos vivos de Newton?
Desta vez sim, eu lhe daria um longo e apertado abraço!
Depois, já cinquentão, ele nos contaria as histórias de sua vida num almoço, eu, ele e minha mulher, diante de uma panela de ferro de frango com grão de bico.
Ele comeria dois pratos… Garantido!