A bruxa vivia no promontório, diziam na feira. Sozinha, na parte mais escondida da floresta, ouvia-se nos degraus da igreja. Não era uma bruxa, era uma alma penada, reclamava a abadessa, benzendo-se ante o choque que a palavra espalhava pelo seu corpo. É uma história da carochinha, meus caros, proclamou o relojoeiro, como tudo o que vem d’outro lado do rio, não fazei caso.

Ninguém sabia ao certo há quanto tempo ela tomara a área entre a floresta e o mar como residência. Ninguém sabia ao certo se, de facto, aí a encontrariam. Muitos foram os relatos daqueles que dela se desencontraram.

A sorte ou o azar bateu à porta de outros que, enquanto passeavam ou forrageavam pela floresta, a vislumbraram. Alguns afirmavam mesmo ter obtido mezinhas ou moções da própria. Estes casos eram poucos e diluídos pelo tempo. As questões que esta aparição levantava permaneciam no dia-a-dia da vila, inspirando teorias e explicações carregadas de histórias cuja confirmação jamais veria a luz do dia.

Até ao lusco-fusco em que a alma penada surgiu à entrada da aldeia.

A debandada que seguiu as palavras de aviso do moleiro até ao velho cemitério continha crianças cujas mães não conseguiram manter em casa, o relojeiro decidido a comprovar o seu ceticismo, algumas viúvas com ânsias de dar nós com novos partidos. A grande maioria dos homens encontrava-se na Taverna àquela hora, bebendo para esquecer as suas vidas e apostando para provar a sua virilidade. Também eles viram na bruxa uma oportunidade única para deixarem a sua marca na memória dos seus conterrâneos. Uma mensagem foi prontamente enviada para a floresta em busca da proteção do caçador local, caso a divina proteção do padre não chegasse a tempo.

O caminho do centro da vila para o velho cemitério fazia-se, pois, numa torrente de exclamações, dúvidas, premonições, a que se juntava o horror das histórias contadas às crianças. O misticismo da bruxa crescia antes mesmo do derradeiro encontro. Era…

Desde a última Grande Guerra que não se via tamanha união na vila. Aí, a ameaça barbárica dos invasores juntara pobres e abastados, tirara mulheres das cozinhas, reclamara o sangue de novos e velhos. O perigo trazido por forasteiros era, portanto, um notório ponto de concórdia nas ruas e nas tascas.

A bruxa não era, não podia ser, um bom augúrio, decidiram os ilustres e os académicos da vila.

Uma ou outra criança questionava a possibilidade de ela ser, na verdade, uma fada ou uma feiticeira, das boas, das que davam sorte. O professor, sem largar a caneca com que saíra da Taverna, engoliu um longo trago antes de responder, cortando com a sua fé inabalável quaisquer tentativas de confraternização com o inimigo.

É uma bruxa, por certo. É sabido que esses demónios adquirem a forma, ou o corpo, de mulheres para aparentar benevolência e instintos maternais, dizia asperamente. Não passa de uma farsa para nos deixar cair das boas graças do Senhor.

— Como distinguimos entre uma mulher e uma bruxa? - inquiriu então outro petiz.

O tipo de veneno é diferente. Bruxas não se comportam com o preceito com que uma mulher bem criada comporta. Não podem ter filhos, para começar.

A seguinte pergunta surgiu com a maior inocência, sendo de imediato respondida com uma vergastada (o professor raramente se separava da sua cana): — A sua mulher era bem-comportada?

Todos na vila haviam acorrido ao funeral da mulher do professor escassos meses antes. Muitas mãos amigas foram estendidas à filha responsável pela morte da sua mulher e aos avós que dela cuidavam. O recém-viúvo passara a seguir diretamente da escola para a Taverna. Se os boatos que circulavam na poeira fossem credíveis, em vários momentos palavras de amargura por não ter “um filho a sério” escapuliam-se da boca educada numa das maiores faculdades do país.

Na outra ponta do cortejo, uma pobre viúva pensava e repensava na sua pobre filha que se recusava a encontrar marido, acudida por vontades que sem dúvida a tentavam para os círculos do Inferno. Sempre escolhera ignorar os seus olhos, mas agora encontrava-se perante um dilema pungente. A sua secreta esperança com todos os pretextos que criava para vaguear pela floresta: poderia a bruxa remover da sua filha a fonte da dor e o medo que causava à mãe? Ou os seus vizinhos estavam certos em cortar a iminência do mal pela raiz? Talvez antes de eliminarem a ameaça fosse possível obrigá-la a prestar auxílio a uma pobre mãe que apenas queria o bem da sua progenitura? Presa em como tentar esta via sem revelar demais, a viúva repensava.

A seu lado, o filho do moleiro pensava também. Jovem, com a vida pela frente, o último dos seus desejos naquele momento era sujar as mãos de sangue. Poderia, porventura, a criatura ajudá-lo a fazer ver aos seus pais o quanto ansiava por conhecer o mundo antes de assentar? A única forma possível sem arriscar a torrente semanal de acusações de covardice, pensava ele amarguradamente, seria se ele próprio matasse a bruxa. Se ele provasse aos seus pais que era forte o suficiente para sair da vila em direção a novos perigos e aventuras.

No fim da comitiva, seguiam alguns dos vilões cujos nomes os restantes não tentavam pronunciar. Nem todos os estrangeiros, como eram conhecidos e comentados, eram recém-chegados, mas todos vinham de zonas tão distintas que era impossível passarem por residentes. Uma linha invisível unia-os na maneira como se comportavam e como faziam negócios. De acordo com o relojoeiro, eram dados a renegociações, mesmo quando a sua preguiça lhes esvaziava os bolsos. Certo dia, um deles tivera a audácia de lhe inquirir quanto a uma posição na loja. Mas o relojoeiro era um homem precavido; ele sabia que cada estrangeiro trazia consigo a promessa de ruína, de roubo, de ganância. Que outras razões teriam para escolher sair das regiões a que chamavam lar, em direção ao desconhecido? Após ter estudado palhetas, cordas e rodas na capital de um país vizinho, ele sabia que apenas o tempo contado por molas, cremalheiras e catracas oferecia a segurança cujos humanos não podiam. A segurança que reluzia na sua mente enquanto afixava na sua montra um aviso lado a lado com a proibição de animais.

Não são permitidos estrangeiros no interior deste estabelecimento.

Em boa verdade, o relojoeiro, e muitos outros, não compreendiam qual seria a maquinação secreta que atraíra os estrangeiros à rua naquele dia. Um logro, afirmavam, por certo estão em complô com a bruxa. Ou então como não sabem falar, acham que isto é dia de feira. Nunca lhes passou pela cabeça a possibilidade de que alguns estrangeiros (porventura aqueles que se haviam mudado de uma ou de outra terriola nacional) pudessem, de facto, entender a idiossincrasia local, e estar presentes por mais do que pura curiosidade. Nunca lhes passou pela cabeça as oportunidades que a existência de uma bruxa criava: a sombra de uma porta para a comunidade entreaberta pela ânsia geral.