“João Malaquias, um jovem de 35 anos morreu na madrugada de ontem num acidente de automóvel na estrada nacional 125 entre Quarteira e Almancil.”

Uma notícia que encontrei ao pesquisar algumas coisas na internet. A notícia caiu-me no estômago como uma pedra. A respiração bloqueou, os meus movimentos congelaram.

Descobri que morri ontem por uma notícia no jornal!
Olhei em volta e a minha vida estava normal, estava em casa.
Apercebendo-me que não saia de casa desde então.
Morri! eu!? o que aconteceu? o que faço eu agora?

Sinto o meu coração bombear, sangue não era, sentia que não o tinha; era ansiedade. Levanto-me, devagar, a cabeça à roda. Tento me segurar à cadeira, sem grandes forças. Devagar, com um passo de cada vez, desloco-me à casa de banho. Procuro um espelho: quem encontro não sou eu, é outra coisa. Um corpo, uma cara, um desconhecido. Olho as minhas mãos, intactas, brancas, escassas. Apalpo-me para me sentir. Olho em volta para perceber: na minha casa tudo igual, no meu corpo, por dentro, tudo diferente. Sinto uma dor aguda que me perfura o peito. Uma dor de ausência. Uma dor de saudade. Tudo em mim é estranho. Será que morri?

Saio de casa a correr, o sol queima-me a pele e no céu, tudo nublado. Escuro. Uma escuridão inexorável. Procuro alguém na rua. Preciso confirmar-me. Alguém para me dizer que estou aqui. Ando deambulando, as forças enfraquecem. As pernas desfuncionam. Vejo um ser ao longe, na sombra de uma árvore, caminho na sua direção. Ao chegar, este ser cumprimenta-me levantando a boina. Morreste e perdeste a morte? Não, a morte perdeu-me, deixou-me o corpo. Mas não por muito tempo. Hãn? … ao olhar não encontrei ninguém. Apenas um tronco de árvore sem copa. Despido na rua.

As ruas vazias, sem carros, sem pássaros, sem vida. Corri, numa velocidade decrescente, até correr parado. Dos reflexos que encontro nenhum é o meu. O meu corpo feito de defeitos e de ausências. Nada corresponde com o que conheço. Olho-me de cima a baixo e tenho tudo. Mas não o sinto. Corpo e mente rompidos, alienígenas um do outro.

O vento sopra forte e sinto-o atravessar-me. Sopra-me com a verdade da morte.
A sombra absorve-me, lentamente. Ninguém para me ajudar.
Por dentro sou dominado por um nevoeiro denso.
Sinto a boca seca, os olhos pesados. Sinto o meu peso emagrecer.
Olho em volta e quero correr. Fugir com todas as minhas forças.

Na esquina que viro encontro-o de volta, o mesmo ser da árvore. Cumprimenta-me, novamente, levantando a boina. Já encontraste a morte? Ainda não encontrei a vida!, grito num sussurro quase mudo, Essa voou com o vento, diz desaparecendo.

Os meus olhos ardem, e quando os reabro ninguém. Apenas um tronco despido, nu, como a rua.

Quero voltar para casa! Quero voltar para o meu abrigo, onde descobri tudo isto. Quero estar a sonhar e acordar em mim, comigo. Toco no meu corpo dorido como se tocasse numa pedra; está tão frio. Avanço, lentamente, lutando com este meu corpo adversário.

As ruas, vazias, que percorro afastam-se da minha casa. Afastam-me da vida confirmando-me o pior. De um silêncio ensurdecedor, um apito agudo atravessa-me as fontes e faz-me cair. De joelhos e mãos no chão choro. Um choro seco que não verte lágrimas. As minhas mãos magras cravadas na terra. Sinto-me arder nas trevas.

Nada mais sinto, nada mais oiço a não ser esta dor do vazio. Um ponto preto dentro de uma escuridão imensa.

Quero a minha casa! Quero o meu abrigo! Quero-me de volta! Que tudo isto pare, agora!

Oiço o eco do meu grito desaparecer, sinto o cheiro de flores e velas queimando. Quando me levanto, vejo uma sala imponente. As cores dos vitrais refletidos em toda a sala. Anjos e homens juntos, vestidos com panos e armas e dor, crucifixos e santos, todos me olham julgando-me. Sinto-me pequeno. Insignificante. Inútil. Assustado.

À minha frente um corredor de bancos vazios.

Oiço vozes de compaixão, a saudade chorar, a angústia vestida de preto, a alegria em luto. Vultos se abraçam, mas ninguém. Ninguém para confirmar a minha morte.

Ao fundo do corredor, um caixão; aproximo-me. Um passo de cada vez, um à frente do outro. Um tapete vermelho, cor de sangue, estende-se.

As minhas lágrimas secas, as minhas mãos encarquilhadas de frio, as articulações presas. A minha respiração débil. Sinto-me cansado. Arrasto-me.

Ao chegar ao caixão aberto, forrado de rendas brancas, encontro-me. Estou deitado, sereno, sem dor. A única pessoa que encontro sou eu mesmo. Vejo-me.

A esperança e o medo encontram-se numa troca de olhares. Um espelho. O meu reflexo olhando-me e, na sede da vida, sou sugado por ele para toda a eternidade.