O dia estava concluído e, Justino, fecha o pequeno portão da sua casa. O portão range com a ferrugem de uma outra vida. As articulações da casa estalam como um corpo obsoleto. “Boa noite”, despede-se da sua casa, grávida de mil anos e viuvez, “hoje, fico aqui, no meu colo.”

A noite estendeu-se com a calma de quem dormia em paz.

O dia desperta sem pressas, tímido, o sol espreguiça-se para lá das montanhas.
A campainha toca, o gato espreguiça-se, o galo ainda dorme. Justino no frio da madrugada sente os ossos ásperos; num movimento vagaroso, caminha.

Ao aperceber-se de que se trata de uma pessoa parada junto ao seu portão, Justino, começa a aproximar-se com as suas danças tribais contorcendo o corpo e a cara — como sempre fizera para assustar quem se aproximasse.

Ao chegar junto do portão depara-se com uma criança: treme de frio, com a pouca roupa desbotada, descalça, cabelo que se confunde com as paredes da sua cabana.

— Não tens medo, criança?

— Senhor, eu sou Maurícia. tenho nada mais que o meu corpo. Andei quilómetros e atravessei mundos e tudo o que encontro é abandono, desprezo, repulsa. Vim sem direcção e aqui cheguei como que chamada por uma força maior — Justino fita as estátuas com um olhar de desaprovação — Sou de terras vermelhas do muito Sul para além-mar. Fugi. Na minha terra chove fogo que destrói. Pássaros de metal voam de barulho. Da terra fugi com vida, completa de matéria, mas vazia na essência. Tudo ficou naquele mar morto de águas sangrentas.

— Venha comigo! — Justino, vira costas e caminha na direcção da cabana: as pernas tremem-lhe, sente um pavor contorcer-lhe o corpo, dores de agonia daquela escuridão de criança desalmada.

— A beleza da alma reflecte no rosto, mas tu, criança, não tens reflexo. A tua alma voou com os pássaros e fugiu como tu, mas para fora de ti. Só de uma água sei que poderá saber encontrar essa alma. O teu corpo é só um corpo. Não poderia estar tão morto quanto a tua terra e o teu mar. — Maurícia caminha seguindo as palavras deixadas daquele velho homem.

Justino mostra o caminho com o seu passo, retira um pau de ebenácea pontiagudo de um canto cheio deles e emprega-se de bengala. Maurícia segue, hipnotizada, o risco deixado pelo ébano na terra.

Numa área sem copas de árvores, o sol começava a aquecer. Maurícia pára, algo a prende ali naquela praça aberta ao céu. Justino continua a riscar o chão aumentando em círculos e distanciando-se dela em espiral como uma pedra atirada à água.

Eram quatro, as linhas que circundavam Maurícia: terra, fogo, água, vento. Justino, a norte, parou, sobre ele, uma só estrela no azul do dia.

— Em cada círculo encontram-se as almas, do maior círculo a tua vida. No centro o teu poço. No fundo a fonte. No céu a esperança.

Maurícia queria falar, mas a voz escondia-se do exterior. O chão, de areia, movia-se. Em cada linha um sentido.

— De todas as escuridões, existe a luz que as corrompe.

Maurícia foi engolida pelo chão, um buraco fundo consumiu-a. Vozes ouviam-se ao redor dela, naquele escuro cego.

Batuque, Batuque, Batuque, Batuque, Batuque, Batuque, Batuque, Batuque, Batuque.

Maurícia chama por Justino num grito ecoado pela profundidade do poço. A voz transforma-se em vento que sai em espiral e recai sobre os círculos criados pelo ponta do ébano.

Ela cerrou os olhos com medo, esperando a sua escuridão ser mais clara.

Batuque, Batuque, Batuque, Batuque, Batuque, Batuque, Batuque, Batuque, Batuque; Bomba, Bomba, Bomba, Bomba, Bomba, Bomba, Bomba, Bomba, Bomba.

Gritos. Gritos de fogo e de pânico!

Os seus medos penetravam o poço com a força dos elementos: terra, fogo, vento. A água submergia pelos pés de Maurícia, uma sensação de afogo. Uma mistura de perigo e protecção.

Batuque, Batuque, Batuque, Batuque, Batuque, Batuque, Batuque, Batuque, Batuque.

Maurícia ofegava, com os seus olhos fechados via tudo, revivia tudo.

Bomba, Bomba, Bomba, Bomba, Bomba, Bomba, Bomba, Bomba, Bomba.

Das suas mãos cerradas uma força. Um grito saía dela com as forças do mundo.

Batuque, Batuque, ... batuque ... batuque. Bomb, ... bum ... bum ... bu...

Um silêncio.

Só o som do seu coração a bater.

Uma paz.

Toda a luz do dia eclipsou para dentro do poço. De um dia claro, o azul-escuro da noite. O sol brilhava de dentro, submergindo à superfície e elevando-se ao céu, novamente.

Maurícia, sentada no chão, abria os olhos devagar. Uma paz colorida, um calor dentro vivo. Uma voz interior consolando-a. Levantou o olhar ainda encadeado. Viu Justino, sentado num tronco na sombra de uma árvore encostado à sua bengala, sorrindo.