Com o passar do tempo, nos sentimos mais à vontade para compartilhar experiências e conhecimentos que experimentamos em nossa vida.

Permita-me tomar uma xícara de café e contar um pouco de como foi minha infância em forma de causo. Topa?

Vindo de uma família muito humilde e de trabalho em área rural, tive a oportunidade de aproveitar brincadeiras simples, mas muito criativas e alegres, e sim, muito boas!

Em 1980, agora com 10 anos de idade e sendo o filho mais velho, comecei a assumir trabalhos que, de certa forma, foram impostos para mim, pois em junho morávamos em um sítio - “Sítio da Boa Esperança” - e como não lembrar desse nome. Foi um local de muita alegria, mas também de um momento trágico.

Lembro-me que eu havia chegado da escola, e vale lembrar que eu caminhava sete quilômetros todos os dias para ir e sete para retornar. Essa escola era constituída de duas salas de aula, onde, em uma, havia os alunos da primeira série e, em outra, alocavam os alunos da segunda, terceira e quarta séries... sim, eram duas fileiras de carteiras tipo mesa para a segunda série, onde nos sentávamos em dupla, outras duas fileiras para a terceira série e uma fileira para a quarta série.

A professora se desdobrava para dividir a lousa em três partes, sendo que a primeira passava a lição na lousa para a turma da segunda série, depois a terceira e, por último, a quarta série (nós da segunda série já aprendíamos lições da terceira e quarta série por tabela).

Depois, saía rapidinho e ia para uma cozinha para dar início ao preparo da merenda, isso mesmo, merenda!!! Esse trabalho era dividido entre as duas professoras, um dia era a Professora Zita da Primeira Série e no outro dia a professora Vera.

Veja bem, hoje com 53 anos, lembro perfeitamente o nome e o rosto da professora, que nessa época era uma profissão extremamente valorizada e respeitada.

Voltando ao Sítio da Boa Esperança, no final de junho (1980), o Brasil recebia a visita do Papa João Paulo II, sendo o Brasil um dos maiores países católicos; essa era a primeira vez que o país recebia a visita de um Papa. Como consigo lembrar disso? Vou explicar... Estava eu ajudando minha mãe nos afazeres de casa (varrendo a sala de chão de cimento vermelho) e vendo na TV o desfile da Vossa Santidade e, de repente, ouço os gritos de minha mãe pedindo para correr e chamar os vizinhos, pois meu pai tinha se acidentado.

Corri na lavoura vizinha da Dona Mitiko (eram japoneses), que tinham um fusquinha amarelo, e pedi para socorrer meu pai, sem bem ao certo saber o que havia acontecido. Lembro que minha mãe pediu para eu pegar um lençol, que prontamente peguei e lembro que era branco. Vi naquele momento minha mãe enrolar no lençol a perna direita do meu pai, que havia sido traumaticamente amputada, além do sangue, o desespero do que estava acontecendo.

Deixe-me explicar... Meu pai era o administrador desse sítio, que por sua vez era muito bonito com campo de futebol, muita área gramada, pomares de frutas, mangueiral (porcos), curral (vacas), galinheiro e estábulo (cavalos). De tempo em tempo, havia a necessidade de aparar a grama que crescia com frequência e, como eu disse, ocupava uma grande área do local.

Utilizava-se um trator Tobata roçadeira para isso. O principal problema dessa roçadeira é que quando parava ou freava, as lâminas da roçadeira continuavam funcionando.

Nesse dia, caiu uma garoa fina como era de costume no inverno. Durante a roçagem, meu pai parou o trator e foi retirar umas madeiras que estavam à frente e que poderiam ser perigosas em contato com as lâminas, mas ele escorregou e sua perna direita foi em direção às lâminas. Embora tenha conseguido puxar a perna, não foi suficiente para evitar a amputação da mesma e de dois dedos da mão direita.

Explicado o ocorrido, voltamos à nossa conversa.

Meu pai acabou indo para o hospital e houve a concretização da amputação da perna. Na noite seguinte, vejo que chegaram muitos parentes em casa, lembrando que era um sítio e distante do centro da cidade, que também era pequena.

Estranhei toda aquela movimentação, pois nunca fizeram isso, um tio contando piada, outro nos distraindo e minha mãe chorando...

Como éramos de origem bem humilde, como já enfatizei, eu e meus dois irmãos dormíamos em uma cama de casal, e às vezes minha irmã também.

Nessa noite, após meus tios e avós nos darem boa noite, eu rezei e pedi a Deus que não houvesse acontecido nada de grave com meu pai... “Deus não deixe meu pai morrer, precisamos dele”, lembro dessas palavras e creio que foi a primeira vez que pedi com toda fé a Deus, algo assim.

Está curioso pelo que aconteceu? Pois bem... A polícia foi na casa de minha tia que morava no centro da cidade, pois não tinham o endereço correto de casa, e como residíamos em um sítio afastado, a comunicaram que meu pai havia falecido.

Entenderam agora o porquê estavam todos em casa? Pois é, meu pai morreu... e eu havia pedido tanto a Deus que não permitisse isso.

Meu vô e meu tio (já falecidos) foram até a Santa Casa local, onde meu pai estava internado, para realizar o reconhecimento do corpo. Foram encaminhados ao necrotério, mas, para a surpresa de todos, não encontraram meu pai... O que havia acontecido?

Meu avô rapidamente deu uma enganada no segurança e subiu correndo ao quarto onde meu pai estaria internado, e qual a surpresa? Ele estava deitado, muito sonolento e sem entender nada, pois já era madrugada e meu pai perguntou: “Cumpadi, o que está fazendo aqui?”. Meu avô no impulso respondeu: “o segurança é um amigo e deixou e ver como você está”.

O que de fato aconteceu é que, para a amputação de uma perna, é necessário fazer o aviso de óbito, o que foi realizado, mas não foi o óbito de meu pai e sim da perna dele.

Passada toda a tormenta, tempos depois ríamos muito, pois meu pai ressuscitou dos mortos... rs. Será que foi o meu pedido?

Hoje meu pai é falecido e sinto muito sua falta, mas seus ensinamentos estão sempre presentes na minha vida, pois depois do ocorrido, conseguimos uma prótese e ele continuou a trabalhar, dessa vez como um excelente pedreiro.

Vale a pena lembrar que eu seguia a região católica até os meus 40 anos e depois me converti em uma igreja evangélica, onde conheci minha esposa e estamos juntos há 13 anos.

Mas esse é um outro causo para uma nova xícara de café.