O preço da fidelidade é a eterna vigilância.
(Millôr Fernandes)
Creio que mesmo a Língua Portuguesa, com toda a sua história dominando o mundo por cinco séculos, desde 1500, sofre com o estrago, o desleixo, os neologismos e os estrangeirismos que afetam até o quotidiano. O que é certo torna-se errado, e motivo de troça; como diria João Ubaldo Ribeiro, é uma 'brincadeira' sem graça... A escrita oficial, antes da sua 5.ª reforma ortográfica, teve nove países signatários no início do século XXI, além de expressões de apoio de outros países que falam a língua: Macau (Ásia) e Andorra (Europa).
Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné-Equatorial, Moçambique, Portugal, Timor-Leste e São Tomé e Príncipe. Não oficialmente, Macau (Ásia) e Andorra (Europa).
Escrevi um conto e dele só recebi críticas não muito favoráveis para quem pretende guardá-lo como acervo para estudar mais e compreender onde residem os erros. Mas a única linguagem que adoro e aprecio imenso é o baianês, falado em Salvador – Bahia.
O conto é uma história que se enquadra na vertente da crónica. Imitando a forma dos conteúdos do escritor brasileiro Millôr Fernandes, repetitivo por ironia, ou fábrica de si mesmo, o conto que narro é uma história sem revelar que nunca escrevi um conto que não me custasse inúmeras reescritas, ou de "mil réis". Vem-me à cabeça, aí até os neurónios, dois, explicam que tive uma Marcela também. Igualzinha à de Brás Cubas, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis: - "Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis".
Deixa de ser um conto para se tornar em contos de réis, dinheiro, dólares, euros e libras esterlinas – o peso argentino é apenas peso e volume; envolvendo traição e consequente falta de fidelidade que repassei – gastei, investi e cultivei. Estourei!
Fui ciumento e apegava-me às poucas palavras, até a não ida para o ginásio era motivo das minhas crises. Então, percebi que após onze meses, 500 mil reais (US$ 100 mil), somados ao apartamento e ao barco que vendi para financiar o divórcio – o advogado, que se tornou marido de Marcela em menos de dois anos após a nossa separação.
Um amigo de bar sempre me alertava: vigilância exagerada é insuficiente para quem é casado com mulher mais nova e bonita. “Mulher faz o homem sentir dor sem gemer”, disse, citando a letra de uma música do Nordeste brasileiro.
— Qual o quê...? Questionava-o em bom baianês.
Ao que ele respondia, repetindo uma frase do seu autor preferido:
— O preço da fidelidade é a eterna vigilância."
Lá ele! Consolava-me, porque onde é que eu iria ficar vigiando Marcela Louka e como faria.
Um casal amigo fez-me passar vergonha. Do interior de São Paulo, telefonaram-me para ir à sua casa na Mouraria de Salvador e levar a esposa que não conduzia para fazer as compras do mês. E, aí vem o melhor: que pagasse com o meu cheque e na semana seguinte me reembolsariam assim que chegassem no outro fim de semana.
Já em casa, a mulher, enfurecida, grita comigo por estar a ser vigiada. E puxou-me pelo braço, perguntando por Marcela e ao mesmo tempo insultando o marido.
Antes de lhe pedir para ter calma, arrastou a mesa do suporte do telefone moderno para a época, digital e com sistema 'Bina'1. Abaixo da mesinha, havia outra mesa tipo caixa com um minigravador cassete. A minha expressão e fala não podiam ser outras: - Barril. 'ferrou' banda mel...
Ela, enfurecida, é dizer pouco, furiosa, pior que uma tigresa no cio - ... o meu nome é Gaaaallll -, estava prestes a pisar no gravador, e parou. O telefone, já o havia atirado contra a parede. As crianças sorriam, porque o nervosismo e o medo faziam parte delas, o que ninguém conta nestas horas. Só se abaixaram, quando o aparelho atirado com tanta força resvalou na cabeça de uma das meninas. Eram, não, são dois rapazes e duas raparigas - por ordem de idade 13, 12, 11 e 10.
Ela agarrou-me novamente pelo braço, e gritou tentando ser calma: — Vamos ao mercado!
Saímos.
— Olha, a Fátima do Acarajé já montou a banca. Vamos comer um acarajé bem quente com uma cervejinha...?
Ela acenou que sim.
Fátima olhou-me com um sorriso e curiosidade, não que duvidasse que ali estava um amigo do casal sem a esposa, que iria ao mercado fazer as compras do mês, já que o marido estava em viagem. - Lá ela... respondi com outro olhar desfazendo a sua desconfiança com o pedido de abará e camarão seco, à vontade.
Os dedos teclam e a vontade de falar o nome do traído, ele também o foi, é grande. Não é uma questão de vingança, mas o facto de ir fazer as compras era um motivo para que soubesse, penso eu, das minhas visitas quando ele não estava em casa, ou se as minhas chamadas favoreciam a um suposto 'affair' por ciúmes, creio!
No mercado, que coincidência. Encontrámos um colega dele do trabalho 'completando as compras do mês'. O miserável morava no outro bairro, a 30 km de distância, onde tem a maior feira de carnes e peixes, e, coincidentemente, estava naquele mercado?
— Vôte, já respondi no diga lá? Senti que o ‘olho’ dele estava esbugalhado à procura de confusão.
— É ninharia! Respondi, olhando para a minha amiga que se virou de costas e foi às compras. O bisbilhoteiro puxou conversa, puxou conversa arrastada, 'rapaz'. Êta lelê!
Já farto e pronto para explodir com ‘o intrometido’, lancei esta: "Estás a meter-te onde não és chamado, vais levar um dedo onde não gostas, miserável? Todos sabem que gostas é de uma cobra grande e grossa... Colocou 10 no ciumento e retirou-se...
Ouvimos a fita do gravador. Velho, não tinha nada de relevante, porque quem armou a escuta não soube fazer a ligação corretamente.
Ainda no mercado, peguei umas fichas e telefonei para o local onde Ele, assim não revelo o nome do sujeito ao mundo, estava num estágio mecânico de aperfeiçoamento.
— Velho, os teus erros vão ser pagos no inferno. A tua mulher descobriu um gravador a grampear o telefone na tua casa e ela está mais furiosa que mulher de vida fácil de hotel de má fama sem toucador.
— Tira-me dessa... desligou.
Agora, pronto!
À noite fomos a um bar restaurante que ela gostava. A minha já ex-esposa, Marcela, ligou e queria encontrar-nos.
"Zorra, ninharia" - descartei.
Pedi o meu Old Parr de costume e kani2 como petisco – julgava ser carne de caranguejo do Alasca. Ela acompanhou-me, e com sede de vingança pediu um chopp bem tirado, com dois dedos de espuma. A combinação foi boa e tornou-se interessante. Fomos para o Raso da Catarina, e ao passar pelo Campo Grande, ou Praça 2 de Julho, avistámos um desavergonhado a cometer atos impróprios atrás da árvore mais frondosa daquela área, que nós, adeptos do Bahia, mandamos sempre os do Vitória para a 2.ª divisão chorar no pé do caboclo.
No Raso, percebi o quanto ela era atraente. Honestamente, nunca a tinha olhado com desejo; veio-me um ardor profundo das entranhas. Sentados na bancada de cimento, admirando a Bahia de Todos os Santos iluminada pela lua cheia, vendo São Jorge a dançar Araketu com a música "Mal acostumado/você me deixou... então volta..."3, entregámo-nos um ao outro. Ninha não queria querendo, e aconteceu!
Nossa! Impressionante... Muita mulher para um louco. E eu vivia num hospício orgástico, cósmico. Ela é uma baiana loira avermelhada que sabe das coisas. E se Deus a fez loira e na Bahia, assim com tanta distinção, se há algum segredo dessa miscigenação, guardou-o para si. Quem conhece a Bahia sabe ou já comeu sanduíche de acarajé com abará, imagine uma baiana loira? Olha, é deboche!
Estávamos praticamente sozinhos, pois os casais mais próximos estavam a 10 metros, por aí, e também se aventurando. Deixámos a garrafa de uísque de lado e a intensidade foi grande. Ela gritou umas três ou quatro vezes nessa madrugada repetida por quatro noites seguidas, e eu admirava-me, porque naquele instante mantive-me firme, tenso.
Lembro-me ocasionalmente dessa loira ruiva. E quando acordo de ressaca, a saudade dessas noitadas só passa ao sentir o sol a rasgar os meus olhos da varanda do apartamento onde moro no Rio. E junto dessa lembrança sempre vem a vocação ao perfeito numa frase cunhada pelo escritor Nietto D’João Cândido: - O sol é a brasa do charro de Deus.
Então: "o preço da fidelidade é a eterna vigilância."
E há quem pague!
Bem, o que tem a Língua Portuguesa a ver com isso?
Descobri que ela nasceu em Aveiro, Portugal. Não é baiana de jeito nenhum...
Notas
1 O nome BINA foi cunhado pelos inventores brasileiros, João da Cunha Doya e Carlam Bezerra Salles, que patentearam a tecnologia em 1981. BINA significa “B identifica número A”, onde A é o terminal originador da chamada e B é o terminal de destino.
2 A principal matéria prima do kani é o surimi, uma massa feita de carnes de diferentes tipos de pescados e misturada com coisas como amido de trigo, clara de ovo, açúcar, extrato de algas, extratos aromatizantes de caranguejo e lagostas, sal, vinho de arroz e até glutamato monossódico.
3 Mal Acostumado. Ara Ketu - Cantor: Tatau - Composição: Meg Evans / Ray Araujo.1998.