Olho para os dois lados: não vem ninguém! Mesmo durante o dia, esta rua tem pouco movimento. Esgueiro-me por uma brecha no portão, atiro, primeiro, a mochila e passo eu a seguir. É assim que entro no prédio abandonado, como se colocasse a chave na fechadura que não existe e limpasse os sapatos num tapete que, também, não existe.
Há vários anos que está devoluto, cercaram-no de chapas metálicas que não me impedem de entrar e prepararam-no para obras que nunca se iniciaram. Deve estar empatado em tribunal, em partilhas litigiosas, e nenhum tubarão capitalista lhe reconheceu, ainda, algum valor. Ainda bem! Fiz dele a minha casa: velha, humilde, sem luz, sem água, sem aquecimento, sem eletricidade, é apenas um teto, mas é o mais próximo do que eu posso chamar “casa”.
Subo uns degraus de madeira gasta e no primeiro andar, bem no canto, resguardado de correntes de ar, está a minha tenda: uma pechincha nessas grandes superfícies de campismo. Lá dentro tenho vários cobertores, ora que comprei, ora que recebi de ajudas; uma manta térmica aluminizada ajuda-me a passar as noites mais rigorosas do inverno, onde o frio e a humidade entram pelas janelas partidas e frouxas e velhas, quase a cair.
Só a luz da lua e dos candeeiros da rua é que iluminam o espaço. Tenho uma lanterna que uso apenas para ler antes de me deitar. O meu colega de “casa” acena-me à entrada da sua tenda. “Acordei-te, Zé?”, perguntei. “Não”, respondeu ele, “não apanhei o sono, ainda”. Também sofro do mesmo, e tantos outros: são os problemas. Conseguimos o sossego partilhando os desabafos com pessoas com a mesma condição e assim os pensamentos diminuem-se para voltar noutra altura. Contudo, não era o caso.
— Trouxe-te uns livros — disse ele, estendendo alguns deles.— Estavam junto a um caixote.
— Uma Conspiração de Estúpidos, Os amantes do Tejo, O Todo Poderoso, Árvores sem fruto. Que raio! — Comentei e questionei de seguida. — Quem é que deita obras destas para o lixo. — O lixo deles é o nosso ouro!
A maior parte dos “mimos” que aqui temos foram encontrados ao abandono, na rua. Como já foi dito: são o nosso ouro. Arrumei os livros junto aos outros, num baú de madeira que os protegia da humidade. Temos aqui uma pequena biblioteca, com romances, livros de culinária, contos, fantasia, alguns livros infantis e, ainda, alguns livros práticos: Como construir uma casa, é um deles. Irónico não é! Autores como Hemingway, Fitzgerald, Rudyard Kipling, Joseph Kessel, Mark Twain, Philip K. Dick, são alguns dos que nos fazem companhia.
O Zé já apagou a lanterna. Amanhã levanta-se cedo para pegar na obra, é um polivalente, mas a sua especialidade é acabamentos de pintura. Tem a mão firme. Costuma andar com um caderno onde desenha os seus esboços de pássaros, animais e paisagens a lápis; não consigo deixar de ficar impressionado com os seus desenhos. Aguarda que o empreiteiro o promova para um cargo de responsabilidade, com o devido vencimento, para ver se consegue sair desta vida de rua.
Eu entro mais tarde, trabalho nos bastidores de um restaurante, sou o tipo que lava a louça, passo o dia a lavá-la, enquanto ouço a minha música. É trabalho honesto, e dá para o que dá, mesmo com horas extras é complicado arranjar orçamento para uma casa. Fazemos os nossos descontos e pagamos os nossos impostos de qualquer coisa que se compre. Como portugueses, não deixamos de nos sentir traídos pelos políticos que juraram defender-nos e à constituição. Essa é a grande frustração.
Nenhum de nós enveredou por caminhos perigosos, de vícios. O Zé fumou umas “brocas” na juventude, nada mais; quem não fumou? Eu, sempre, fui mais de “cervejolas” e concertos sem ter um consumo abusivo, muito menos agora, que o dinheiro aperta. A verdade é que já não são os desgraçados que sucumbiram aos vícios que estão na rua. Se há pecado que nos assenta, foi não ter continuado os estudos. O Zé tem o 3º Ciclo terminado que vale tanto como o meu 12.º ano. Há, no entanto, quem tenha licenciaturas e que se aproxime das nossas dificuldades. Nada é seguro, hoje em dia, nada é garantido.