O sino toca.
O sino toca.

O sino toca, novamente.

— De quem é a voz que de vez em quando toca? — pergunta Justino ainda dormindo

— É um sino de sonho, uma engenhoca para te procurar.

— E quem me procura?

— Sou eu, o sino que sonha o sono que não quer mais acordar.

— Quem é dono da voz que não quer acordar de vez?

— Sou eu, amigo. Um amigo que se perdeu da vida que vê e que só quer sonhar e abraçar o sono.

— Alguém que está vivo não pode só abraçar o sono. Estás morto, dizes?

— Não, estou vivo! Mas vivo de olhos fechados, amigo.

— Assim não vês. E irás de vez perder a vida.

— Eu vejo. Vejo tudo o que quero ver, menos o que os meus olhos abertos vêem. Eu quero assim esconder-me da vida, sou o sonhador entregue ao sono.

— E que nome tens tu, sonhador?

— Se assim me chamas, assim é o meu nome. Amigo, e tu? Como te chamas?

— Eu sou Justino. Aquele que vive de olho aberto, mas que vê o que olhos comuns não enxergam.

— Vês-me, Justino?

— Não. Não te vejo e por isso estranho.

— Sim, sou estranho. Chama-me de sonhador estranho. Porque nem tu, que vês, me consegues ver.

— Eu vejo o estranho, não vejo o sonhador. Talvez tu, não sejas o que pensas.

— Eu só penso em sonhar, Justino amigo.

— Então sonha, estranho sonhador. Eu sei que te encontro por aí.

Justino acorda nessa manhã, o som do sino ainda ressoa no seu interior. Dormiu até tarde: "será que sonhei muito?" Pergunta-se, será que ainda sonho? Levanta-se, espreguiçando-se com a vontade de quem expele o sono do corpo. O sol raiado ilumina os cantos descobertos do seu tecto de zinco.

Ao sair da palhota, agradece ao vento que refresca o chão que dança no calor do sol reflectido. Passou o dia a pensar no sonho e questionava-se se é assim que o sonhador estranho se sentia. Vivendo sonhando ou dormindo acordado.

Foi até ao poço retirar água para o seu dia. Os assobios enferrujados do pai içados daquela água purificadora. Encheu a terrina de barro do seu altar no interior da palhota e guardou o restante para o seu almoço. Este meu pai anda com sede, murmurou, observando que a terrina se esvaziava com o tempo e o retracto do pai se confundia cada vez mais com o seu próprio reflexo: há muito que não te falo, pai. Tenho andado ocupado. Tive um sonho estranho, um sino que me chama mesmo depois de acordar, o que será?

Uma pena recai sobre a água da terrina e o seu reflexo se dissipa em círculos.

— Hoje vou te visitar, velhote, talvez me queiras dizer alguma coisa — disse, olhando para reflexo na água.

O cemitério ficava ao lado da sua casa, acessível por um portão esquecido pela vida e pelo tempo. Ao trespassar a propriedade, ouviu um sino; o mesmo que só existia no seu sonho. Um som que vinha de dentro, que lhe estremecia os ossos. Estranhou, e a cada passo o som dissipava-se.

No trilho, via o jardim regado a lágrimas. Era uma vegetação colorida pelas memórias dos mortos; e o vento apagava os restos de vida que ainda sopravam em murmúrios.

As mãos de Justino nunca perderam o toque firme, nem se tornaram moles. Eram mãos arquitectas de casas para a eternidade. Justino contornava as campas e lembrava-se das que cavou sozinho e das que cavou com o pai. A cada passo revivia os ensinamentos herdados, o primeiro contacto com as almas, a voz do pai, as suas palavras sábias.

Era já velho, sabia, mas a memória mantinha-se jovem.

Ao chegar à campa do pai, estava tudo como tinha deixado no dia que se decidiu abandonar aquela vida: a lápide era a pá cravada na terra, a oração o sangue seco na pega, o adeus o sal das lágrimas choradas de quem fica. Uma campa feita pelo próprio morto, assim parecia: abandonada. Limpou à volta e, sobre a campa, plantou duas sementes de figueira sagrada e prometeu fazer uma escultura, pois o pai merecia uma homenagem.

Ali ficou, a conversar com o pai, como nunca tinha feito. Contou-lhe das estátuas de ébano que resultaram num chamamento para gentes perdidas. Falou-lhe de Maurícia e do pescador. Desabafou sobre a felicidade e sobre a saudade. Regou a sua campa com lágrimas de quem já não sabia chorar.

Deixou uma caixinha com cubos de cana-de-açúcar, sabendo que o pai adorava mascar as fibras e deliciar- se com o suco doce da sua machamba (horta). Olhou o sol, que já estava alto e, assim, despediu-se de todos que ali dormiam a eternidade.

Quando voltou, sentia-se esgotado e foi deitar-se na rede no interior da sua palhota. Adormeceu rapidamente.

O sino toca.
O sino toca.

O sino volta a tocar, novamente.

— Que queres tu agora, sonhador? Logo agora que me tinha decidido a descansar.

— Só assim te falo, Justino. Esqueceste-te que assim eu vivo longe da vida?

— Não me esqueci, até fui visitar os que realmente não vivem. Não são como tu!

— Esses também não sonham, amigo. Eu não quero despedir-me da vida, só decidi não querer viver acordado.

— E porque tocas tu um sino? — perguntou Justino, intrigado.

— Porque posso tocar qualquer coisa. — O som de uma trovoada ecoou ao longe, interrompendo o silêncio. — Vês?

— Para encontrar o caminho é preciso caminhar. Isso parece-me insensato, viver sonhando. Ou dormindo acordado?

— Eu gosto de sonhindo. Quero sonhar todas as madrugadas da noite, todos os sonhos do sono. Assim, sou feliz! livre como um pássaro, translúcido como a água, leve como uma nuvem. Sou o quero ser.

— Há nuvens pesadas, aquelas que carregam essa água translúcida de que falas.

— Também as posso ser. Como te disse, Justino, posso ser o que eu quiser. Queres ver chover? — Começou a chover.

— E quantas manhãs dormiste? E quantas tardes não vives? Quantos dias te escapam por serem só as madrugadas da noite que sonhas?

(silêncio)

— Entendo que no sonho o mundo está nas tuas mãos, mas não se chama isso viver. Viver, é reconhecer a diferença e apreciá-la, respeitá-la acima de tudo!

— Recentemente senti uma tristeza enorme, tinha a forma de um vazio fundo, chorei. Ao aperceber-me que chorava desenhei um rio que desaguava no mar e tudo ficou melhor.

— A vida também é como um sonho, mas não se sonha, vive-se. Acorda, para não te esqueceres da vida e poderes lembrar-te do sonho. Acorda...

Justino acordou com as suas próprias palavras. Saiu da rede com alguma dificuldade, o seu corpo envelhecido grudara— se ao tecido como um só. Agarrou no seu cachimbo e colocou uma mistura de sálvia branca, calêndula, alecrim e um pouco de liamba, prensou-o. Acendeu-o com um longo trago e largou o fumo sem travar. O fumo branco, espesso, dançou ao encontro da luz.

O sol estava a pôr-se e Justino agarrou um pequeno pau de bétula caído, com a sua navalha começou a descascar. Devagar foi ganhando forma fina e estreita de um Ukhurhe – em honra ao seu pai e os seus antepassados. Deixou-se levar pelos movimentos dialogados entre a madeira e a navalha.

Assobiava uma música muito assobiada pelo pai, o seu assobio estava tão enferrujado quanto as roldanas do poço. Com um pouco de prática conseguiu aprimorar as notas esquecidas e, assim ficou musicando aquele diálogo.

Mais tarde, o pau já se aproximava de uma estatueta. Usou as raspas para acender o fogo e assar uma maçaroca com sal. Aqueceu um pote de água e fez uma infusão de erva príncipe.

Era de noite, Justino saciado pelo petisco acabou por adormecer.

Apareceu um passarinho, que ao invés de cantarolar abria o bico e saía o som do sino.

— Parece que não me ouviste, sonhador!

— Ouvi-te, mas viver é doloroso para mim, ver e rever as dores que deixei. Fugi da realidade para não as ver mais. Sinto-me bem como um estranho nesse mundo dos acordados.

— Estás a fugir à dor e não é isso que se chama viver, Sonha Dor-estranho nome esse que já diz tudo, só tu não vês por viveres dormindo.

— Olha! Interessante, mas não me sinto sofrer. Tenho uma proposta, vens sonhar comigo.

Justino estava num barco no centro de um lago adormecido. O sol e as nuvens reflectidas eram cópia exacta e perfeita. Olhou para cima e viu-se também no céu reflectido dentro do barco. O seu reflexo acenou sorrindo e Justino, perplexo, agarrou-se ao barco que balançava violentamente, até que foi atirado à água. Afundava como em queda livre do céu, ao fundo a terra crescendo á medida que caía. O lago, o barco, enquanto desabava sobre eles, aproximavam-se a uma velocidade que aumentava incessantemente. E, então o sino tocou.

“É preciso sonhar para viver, mas não se pode dormir para a vida.” — era a voz do seu pai.

Justino acordou, em sobressalto. A respiração ofegante, o coração a bater forte provocavam-lhe dores no peito. Encharcado no seu próprio suor. Lentamente, levantou-se controlando a respiração, bebeu um pouco de chá frio. Caminhou até ao exterior da palhota, observou o céu escuro, e a pouco e pouco começou a acalmar-se. Ouviu as cigarras cantarem com as estrelas, o vento soprar nas árvores, a brisa refrescante de uma noite quente.

Voltou para a cama, o corpo a recuperar do trauma, pesado de cansaço mergulhou num sono profundo.

Não se lembra do que sonhou.