O Brasil é um país cheio de Brasis dentro dele. Cada estado tem seus próprios costumes, suas próprias palavras, suas próprias danças, seus próprios modos, suas próprias comidas.
Mas também somos muitos os brasileiros e brasileiras que moramos longe.
A experiência de emigrar é única para cada pessoa: algumas encontram o amor, outras fogem da morte. Algumas fogem da crise, outras conseguem trabalho, e outras simplesmente procuram uma vida melhor. Todas as razões são válidas.
Quando moramos fora por muito tempo, mesmo nos identificando muito com nossa região de nascimento, a noção de “casa” muitas vezes muda. Passamos a ser, como diria o célebre músico Facundo Cabral, “nem daqui, nem de lá”. Cada um dos Brasis que encontramos aqui fora passa a ser uma festa, mesmo que esse pedacinho não seja do estado onde nascemos. Uma comida, uma música, um cheiro. Tudo nos lembra a casa.
Quando moramos fora, reconhecemos a um dos nossos de longe, e não pelo sotaque. Sentimos falta de coisas que antes nos pareciam tão triviais. Rimos das coisas que antes eram normais e hoje parecem estranhas. Também rimos de coisas que pareciam estranhas e agora resultam normais. Agradecemos, hoje, a existência dos aplicativos de mensagens e das redes sociais: às vezes são o único ponto de contato que nos resta.
Quando moramos fora, sentimos falta. De pessoas, de lugares, de costumes, de comidas. Deixamos atrás uma parte de nós, mas ganhamos outras. Emigrar deixa um vazio, mas também preenche.
Emigrar é não ver sua cidade mudar (e se surpreender com isso ao voltar - se voltar), é não ver seus seres queridos crescer ou envelhecer, é não poder se despedir na hora da morte. É lidar com a dor e a solidão. É se adaptar a um lugar muitas vezes estranho, talvez aprender outra língua. É abrir a cabeça a novas experiências, novos sabores, novas idiossincrasias.
É se sentir um peixe fora d’água. É “fechar a conta e passar a régua”, embaralhar e dar as cartas de novo.
Mas também pode ser encontrar a felicidade. Também pode ser encontrar outras amizades verdadeiras. Também pode ser trabalhar do que se gosta. Também pode ser seguir um sonho.
É muito importante entender os desafios de emigrar antes de empreender a viagem: isso ajuda a que a pancada não seja tão forte.
Mesmo assim, há situações que entenderemos somente ao vivê-las.
Porque emigrar também é procurar trabalho sem poder dar referências, procurar uma casa sem ter fiador, é se acostumar com a solidão até fazer amizades, é enfrentar a burocracia. E muitas vezes é ser bode expiatório e sofrer xenofobia.
Emigrar também é conhecer lugares lindos, provar novos sabores, conhecer novas danças, novas maneiras de se relacionar. É conhecer pessoas novas, aprender coisas novas. É adrenalina.
Mas mesmo assim, não me arrependo de ter ido embora. Encontrei aqui muitas pessoas maravilhosas, aprendi outra língua, outros costumes. Me adaptei a situações que pensei que não poderia. Me perguntei muitas vezes se continuava valendo a pena estar aqui, mas continuei.
Pude ver as montanhas e os vinhedos de Mendoza, as baleias em Puerto Madryn, a Montanha das Sete Cores em Jujuy. Pude estudar o que amo, pude ir a congressos, pude ir pra rua brigar pelas causas que defendo. Pude fazer voluntariado. Pude ensinar e aprender. Aprendi a me defender.
Pude ter dúvidas e certezas. Muitas de ambas.
Mas também tenho certeza de que ainda não encontrei meu lugar no mundo. Sim, porque esta alma nômade voltará a emigrar. Depois de tantos anos longe, estou mais experiente, mais inteira, mais consciente, mais forte, mais dura. Agora entendo os erros que cometi quando vim, e estou pronta para não repeti-los. Porque sou fazedora do meu próprio caminho, desde sempre, mesmo pesando as dores e as delícias.
Porque, apesar dos pesares, emigrar é uma experiência que abre a cabeça como nenhuma outra no mundo.
Depois de tantos anos, entendi o real significado da frase “você sai da Bahia, mas a Bahia não sai de você”: sinto falta da minha avó, do pôr-do-sol no Porto da Barra e do acarajé de Munda, com muita pimenta. Me surpreendo como meus primos e primas já têm filhos, e como crescem. Os 98 anos da minha avó ainda dão um bug no meu cérebro: ainda ontem ela ainda tinha 80.
A Bahia realmente não saiu de mim, tanto que hoje em dia a levo na pele. Levo a Bahia e suas pimentas, levo seus cheiros, levo sua cultura afro. Também levo meus avós comigo: não pude me despedir do meu avô, mas agora ele vai onde eu for.
E também levo na pele, a fogo, um lema: “Nunca desista”. E recomendo essa frase pra qualquer migrante: seja de cidade, de estado ou de país. Em alguns momentos, isso é tudo o que resta.
Por todas estas coisas, às vezes me preocupa quando ouço pessoas próximas falando em emigrar. Não porque ache que elas não poderão sobreviver ao processo, mas porque me dói saber que muitos deles não querem ir embora. Na maioria dos casos, é a realidade local a que os expulsa.
Viver sem perspectiva de futuro, ou com medo de ser perseguido, também é morrer um pouco por dia.
Duvido muito que minha história, sendo uma brasileira que mora longe, seja tão diferente das histórias de pessoas migrantes de quaisquer outros países.
Todas elas se aventuraram a deixar muito da sua história para trás; se aventuraram a tentar fazer uma vida inteira caber num par de malas, compraram uma passagem só de ida e foram enfrentar o desconhecido. Não somos nem mais nem menos que alguém por emigrar. Mas ser migrante não é fácil: são muitas lutas internas e externas. É balancear todos os dias se continua valendo a pena. É inclusive um desafio à saúde mental, às vezes.
Migrar é pra quem tem coragem.
E também é um direito humano.
Porque nenhum ser humano é ilegal.