Perco-me na tentativa de encontrar o lugar onde nascem as ideias. A superfície social condiciona-me e o produto interno bruto da minha dignidade cai para valores mínimos, depois de perceber que a única propriedade que tenho é o tempo à minha frente e as escolhas que fiz com o que passou. O desgosto é uma marca registada que exibo publicamente. Quando nos intrometemos no movimento, os ombros prolongam as avarias do corpo. O olhar, marca visível que define os corpos, desafia o fígado, os intestinos e até os ventrículos e os pulmões com que ocupo o território, me movimento e contribuo para os índices de produção e, no final, nada me pertence.

Vim até à esplanada do meu bairro para tomar café e escrever umas notas depois de, no laboratório de análises clínicas, uma funcionária inchada por carnes enlatadas e batatas fritas indicar com a mão sapuda a sala de espera e eu aflito para ir à casa de banho, aguente-se que o exame tem que ser feito com a bexiga cheia.

Olho em redor, sou um habitante de ver, na sociedade que fabrica costumes. Desloco-me pela mecânica de pernas e braços e levo uma vivência urbana bem-comportada.

A perda dos anos falsifica a distância. Lembro-me, em miúdo, de ver os cemitérios cheios de gente em Dia de Finados, hoje não há memória por quem foi nem por quem fica. Nem a televisão fixa as pessoas nas suas imagens, antes contribuem para o seu aniquilamento sensitivo, uma perda que vem do conforto patrocinado pelo cartão de crédito, os vidros duplos, o frigorífico cheio de comida processada, os dados móveis ilimitados. Não agimos, aceitamos, por isso não desligamos, levamos uma vida urbana e a terra na sola dos sapatos já nos incomoda, porque risca o pavimento flutuante da Leroy Merlin, nas obras em que também se substituiu a banheira por uma base de duche, porque a idade não perdoa riscos desnecessários.

A vizinha do prédio em frente frequenta a universidade sénior e faz ginástica, mas eu não gosto dos derrotados dos ginásios que correm até à perda de fôlego orientados pela disciplina do aparelho, das ordens dos personal trainers, que dito em inglês fica mais fino, da balança que lhes assinala as gorduras e dos halteres de geleia que levantam orgulhosos, nos seus músculos exagerados, que exibem com orgulho canhestro no escritório das multinacionais, onde ganham mil euros ao mês e levam almoço na marmita, depois de noites mal dormidas em apartamentos de periferia invadidos por cheiros nas cozinhas Ikea equipadas para preparar um saudável arroz de brócolos, ginásios onde os velhos procuram recuperar alguma paz para o incómodo das artroses e onde perdem mais tempo na conversa que nos aparelhos.

Na esplanada, um vão entre prédios, acaba de chegar a antiga costureira do bairro que criou filhas e netas de tanto cerzir, a queixar-se que a gente com a idade vai diminuindo, depois de constatar que já não chegava às prateleiras de cima do armário da cozinha.

Procuro ouvir conversas e tomar notas para escrever o artigo para a revista Meer, ultimamente, por falta de inspiração ou de interesse em escrever sobre uma sociedade que se desmorona dia a dia, com o amor domesticado e transformado numa fórmula de consumo e conforto e o quotidiano gasto em equívocos e a cumprir ordens numa mecânica de desfiguração social, já me faltam as palavras.

Revejo as minhas notas e acendo o isqueiro, atrás de mim uma velha dispara: quer matar-se, mate-se sozinho!

Volto à revisão das notas, tão díspares quanto confusas, demoro-me na escolha das palavras como se fosse uma análise de física quântica, numa sociedade anónima separada pelas raízes da linguagem.

A esplanada está agora cheia, alguém tosse com insistência, e na mesa falam em catarro e pneumonia, é preciso andar agasalhada que o tempo não está para brincadeiras, um azar nunca vem só, e as coisas más aparecem sem aviso, meia dúzia de provérbios a antecipar desgraças.

A antiga costureira passeia a conversa pelas compotas e doce de tomate que faz e guarda em frascos de grão e azeitonas, à minha frente uma senhora de idade, vá-se lá saber o que é isso da idade, cabelo branco e óculos de ver ao perto? Roupa de cores escuras? Está embrenhada na leitura e eu procuro ler o título impresso na capa, dos outros chegam-me trivialidades e resultados de futebol aos meus ouvidos neutros e uma conversa difusa sobre os idosos, nos lares, serem animais domésticos que se sujeitam a não ladrar consumindo oxigénio para compensar a falta de atenção, comportando-se ordeiramente e estreitando as artérias até à trombose e depois aparecem filhos e noras no hospital, intactos nas suas panças de má digestão, perfilados para os convencer de que têm de ir para um lar, e assim ocupo o espírito sem conseguir dar consistência de artigo às notas que tomei consoante os materiais do verbo.

Levanto-me para ir acabar o artigo em casa, essa liberdade de escolher e contar que pertence às palavras e me permite ir à procura de outra perspectiva do país, que só tenho visto pela margem.