Cedo a vida lhe tolheu movimentos e diminuiu sonhos. Com marcas físicas e não com figuras de estilo contextuais. Ser a derradeira de uma longa prole destinou-a a ser a última a sair de um local donde não se saía, ao tempo. Por não haver experiências e lugares de futuro. A geografia fê-la e a terra misturou-se com a sua pele. Sulcou-a de rugas e preencheu de pó esses espaços. Escureceu a sua tez, mas não lhe escureceu a alma, o sorriso e o empenho vertido em teimosia, superação e elasticidade adaptativa.
Um (outro) regresso inesperado e contrariado à aldeia, entreabriu-lhe uma fresta de possibilidade. Casou, tarde, mas a tempo de muito. Sair, nesse caso, implicou ficar perto. E esse conforto sossegou o começo desassossegador. A maternidade foi a grande mudança estrutural, assumida como projeto, que a marcou para sempre, nas entranhas, no corpo e na alma. O filho que se moldou no seu corpo, reteceu de fio diferente, com tonalidade mais garrida e força vinda de algures bem dentro e profundo a sua personalidade de mãe. Foi-o em permanência, mesmo na ausência, numa identidade ainda maior que o ser mulher.
Depois de viver para os pais, passa a viver para o filho, num esquecimento de si que foi sendo peso leve. Dor e superação misturam-se em doses semelhantes, quando se dá um sentido maior ao que se é. Abnegou-se para lá do limite, privando-se dos prazeres impossíveis, sem mágoa ou rancor maldizente da sorte. Sem se privar dos pequenos e acessíveis prazeres, como a bica e as viagens do rancho.
Adaptabilidade podia ser o seu nome. Daqueles sérios, que se confundem com o dentro. É disso que é feita. Foi assim que passou os seus dias, sem precisar de o dizer, de tão marcado na carne que estava. Reconstruiu-se mais do que o esperado, o necessário para não se render a nenhum problema e só detível pela míngua que não permitia ter tudo. Mas, mesmo aí, sem inveja ou desalento pela sua condição, numa resignação consciente e, a seu jeito, feliz.
No começo, a vida súbita e inesperada sem aviso prévio diminuiu-lhe a perna e inclinou-lhe a coluna, sem a entortar. Paradoxalmente, caminhou mais rápido, sem longes impossíveis e desejando ir além do que os sentidos conseguiam alcançar. Ao seu modo, a espaços, com vontade autónoma e a sorver oportunidades oferecidas pelo acaso feito ocasião, conseguiu-o. Foi sempre construtora de pontes, sobretudo no tocante às necessidades de saúde e educação. Com isso vinha o vestuário e outros essenciais à vida. Em troca, dava o máximo que tinha. E dava-se a si. Nunca desvaneceu essas pontes e granjeou essas empatias até ao derradeiro suspiro. A “cidade” nunca a amedrontou, mesmo se a ruralidade vivia sempre dentro de si.
Começou por congregar (na mesa da chanfana, da broa e folares do forno de lenha, da cabidela da capoeira…) os diálogos mais improváveis, da esquerda e da direita, de liberais e conservadores. Pouco participava da prosa destes conversadores, mas nenhum deles lhe venceu as convicções com nenhuma substantiva argumentação. Foi o seu jeito de ensinar a política, o bem comum que precisa da participação de todos, a cidadania do ‘estar’ com voz e vez. Sugeriu sempre, com esses gestos, que aquele que criava teria ali lugar e não teria de se resignar a nenhuma condição menor.
Isso foi, também, a par da televisão desde sempre, dos jornais e de alguns livros, a formação complementar que os seus recursos conseguiam oferecer àquele que assumira a responsabilidade de criar e educar. Cedo ousou dispensar-lhe a enxada, para que tentasse encontrar ferramentas mais consistentes e de mais futuro. O que isso encerrou de desafio sociológico às mentes circundantes de sentido inverso não foi sempre pacífico. Não o temeu. Repetia-o e sugeria-o a quem entendia que conseguia compreender, sem disfarçar o orgulho que ostentava e os retornos progressivos que resultavam das suas opções. Foi mulher de sementeiras. Sabedora de que não colhia para si. Sem sinais de arrependimento.
Sacudiu o pó da terra da pele, sem o soprar da alma, para se aventurar na ‘cidade’. Também aqui em tensão contra a corrente da circunstância que a envolvia. Avançou por si, com o respaldo do seu restrito núcleo – marido e filho –, vencendo as contracurvas do percurso. Persistiu quando desistiram de si. E recomeçou. Encontrou abrigo humano, suavizador e relativizador do peso. Relevador do dinheiro. Esta foi a sua escola em adulta e onde se revelou boa aluna.
Estabilizou num registo que se lhe afigurou sereno, vivendo com o filho a sua vida. Com laivos de excessividade que o amor justifica. Com um respeito tão extremo, que se revelava impossível e incompreensível para quem de fora o via. Sobretudo, sei-o agora, porque, para ela nunca existiu lado de fora das coisas importantes, mesmo se a ausência e o silêncio aparentes fossem a sua forma escolhida de estar.
Este tempo deu-lhe mundo, pela teia entrelaçada de pessoas que lhe permitiu experimentar. Foi alegria, êxtase, orgulho. Sofrimento, confronto, dor. Compromisso, pertença, indiferença. Foi ser por meio de outro, por causa de outro, noutro. Foi estar naquilo que o outro estava a ser. No simples que captou, no complexo que lhe escapava, mas fazia objeto de apreciação.
Este tempo deu-lhe geografia e cultura e ensaiou nela uma relação distinta com a geografia e a cultura de origem. De imersão na novidade, a ponto de tornar ténue, ainda que cuidadosa e preocupada, a convivência com a terra que a vira nascer e trazia cravada na pele. Ansiava o novo e sorveu deste tempo o que pôde, galgando os montes que lhe encurtavam o olhar desde a infância.
Este tempo transformou-a, portanto, sem lhe retirar fidelidade ao que era. Foi, ao seu jeito, o modo possível de cultivar a sua personalidade e ser porosa em relação ao que a rodeava. Desde sempre a música, o livro, a conversa com a pessoa de erudição mais letrada, foram a formatura possível, numa ‘escola’ onde, à partida, parecia não ter lugar. Culminou com a religiosa fidelidade a um concurso televisivo da televisão pública, onde aprendia palavras novas, lugares e nomes desconhecidos e estabelecia relações que lhe mantinham o cérebro cognitivamente ativo.
A história trouxe turbulência quando parecia ter tudo para estabilizar.
O seu filho transformou a sua vida com radicalidade. E a resposta, que muitos esperavam tempestuosa – talvez ele mesmo – foi só respeito e proximidade. Mesmo ‘briga’ com outros, quando as fronteiras lhe pareciam ultrapassadas e a intromissão excessiva e intolerável.
Queria muito viver. Mesmo no final. Sempre. Com ideias, com coisas para fazer. Foi uma dor serena, uma fragilidade bela, uma partida cheia de presença e de relação.
O acaso bom, que só se explica e percebe com o coração desperto, trouxe-lhe uma agente de paz, uma relação cúmplice, feita da confidência possível para que o tempo dava, de gargalhada, do polegar erguido em aprovação quando as palavras demoravam a soltar-se. Foi um fim profundo este. Dizia-a, com orgulho, aos ouvidos que entedia terem capacidade para escutar. Ver o seu feliz era o culminar com sentido de todo um projeto de vida seu. Era justo que tivesse visto mais um pedaço, mas não deu. E fez-lhe muito bem.
Chama-se Maria dos Anjos e é a minha mãe. Partiu para a Eternidade a 4 de setembro de 2024 e vive agora junto d’Aquele em quem acreditou e está presente por dentro destas linhas, sem ser nomeado.