Suspirei absorto ao olhar o calendário. Outubro nosso de cada ano que sempre chega. Tudo acontece em outubro. Mês dez que já foi um oito romano, transformado por Gregório XIII, que tinha a santa pretensão de corrigir o anuário... Dez é também o arcano da Roda da Fortuna no Tarot e aí sim, tenho explicação e consolo para tudo. A Roda é o ciclo das coisas; o começo, o fim e consequentemente, o recomeço. Ele acontece. Inevitavelmente. Em minha vida, observo curioso, fatalidades e alegrias imensuráveis quando se extingue o verão.
Nasci em outubro, junto ao tapete dourado e vermelho que as folhas tecem nesta época. Anos mais tarde, no mesmo mês, conheci Laura, numa viagem à Argentina. Unimos nossas vidas com o cadeado prateado na Ponte do Amor em Buenos Aires.
Todos os filhos também nasceram, obviamente, sem o menor planejamento, nesta altura do ano. Os que vingaram e os que não vingaram. Assim, tive as emoções mais contundentes, a celebrar natividades e a providenciar sepultamentos.
Pessoas importantes e cães fiéis se foram, do mesmo jeito que chegaram oportunidades grandiosas de sucesso. Ganhei muito em outubro e perdi na mesma proporção. Realizei sonhos de infância e deparei-me com dura realidade. Saboreei os mais doces prazeres e congelei-me em amargas desilusões. Tudo em outubro. O mês escolhido para as surpresas mais gratas - e nem tanto - da minha vida.
Lembro-me que em meu peito, um maremoto agigantava-se. As águas agitavam-se tamanha era aquela tormenta. Ainda fora do país, a construir a vida, a dar passos em direção a uma carreira e estabilidade, deparei-me com traição e falsidade em uma sociedade infeliz. Não preciso nem contar quando isto aconteceu, não é mesmo? Sem perspectivas, com uma família e a alma para nutrir, recomecei mais uma vez, dentre tantas outras que a Roda girava anualmente. Confesso que quase cheguei a acostumar-me com isso, mas não fui capaz de evoluir para tanto, ou pelo menos de considerar por este prisma. Mas segui em frente. Acho que aceitei. Sim. Segui em frente.
É interessante observar as coisas a partir da velhice, perceber que o tempo de alguém não pode ser linear, uma vez que volta-se sempre no mesmo ponto, por tantas e tantas vezes, enquanto se respira nesta vida.
As impermanências naturais da existência acompanhava-nos, como a toda gente. Mas comigo tudo era muito radical. Laura, nesse avassalador carrossel, supostamente tinha dificuldades em fluir harmoniosamente, mesmo com todo amor que nos envolvia. Ao passar dos anos, uma depressão profunda tomou conta de seu sorriso, de seu corpo e de toda sua vontade de viver. Terríveis crises acentuavam-se e foi difícil manter o alento. Mais um desengano para a minha coleção de outubros. Despedi-me da companheira amada, mãe dos meus filhos e par insubstituível.
O que eu aprendi com tudo isso? Que uma lei invisível desmantela as ilusões? Que não existe vontade e decisão? Existirá mesmo o destino? É possível amar o amor fati do Nietzsche? Amar - e amar-me - por tudo que aconteceu? Afinal, o que passei formou-me assim, trouxe-me aqui. É possível sentir o tão supremo ato de amor próprio? Tudo que passei é parte de mim e mesmo com todas as injustiças não há lugar para o 'E se fosse diferente?'
E o que eu fiz a partir dos tantos novembros que vieram? Eu aguardei os invernos, e como as árvores fazem, concentrei minhas forças nas raízes. Só assim pude florescer nas primaveras e aproveitar o calor do solstício. Observar a vida no auge da maturidade e refletir é um exercício interessante. O que posso pensar é que estamos/somos muito próximos da natureza e eu, urbanoide convicto, jamais pensei sobre isso... Uma sabedoria ancestral que só quem tem olhos de ver consegue apreciar.
Revendo o filme da minha existência parece um baita drama, mas é só a vida, do jeito que ela é. E como eu lido com o que acontece conta mais que o próprio fato, que o próprio fado.
Hoje, dentro de mim, do centro da minha Roda, persevero com resiliência. É o que me resta. Sinto que deixarei este mundo em outubro. Oh! Um mimo do destino. Não negocio com a morte, eu sempre aguardo o mês dez.