— Justino! Justinoo!
— Justino!
— Juustinooo!

Justino, espreita afastando as cortinas da entrada. O olhar trancado, questionando- se quem grita e porque é que o transtornam.

— Justino! Meu deus, ajuda-me. não me deixam voltar ao mar. chamam-me de louco, mas são eles que me levam à loucura.

O ar dele era de louco, um ar sujo, um cheiro de peixe. A camisa xadrez de flanela gasta, as botas de borracha, o macacão impermeável, o chapéu redondo amarrado ao queixo.

— Justino, Justino, por favor.

— Não sei quem procuras, mas Justino não está!

— Como não está?! A cada dia que passa eu seco, as minhas carnes apodrecem. Preciso voltar para o mar e não me deixam.

— Justino não está! foi embora para nunca mais voltar — respondia Justino, impaciente.

— E agora? Onde o encontro? E o pai? Que assobiava tão bem como ele, as magias também o circundavam, és tu? Por favor, ajude-me.

— O pai morreu há muito tempo, rapaz. abandonou a vida, virou terra e pó.

— Justino... alguém que... — E cai no chão de joelhos, rastejando na direcção dele — Alguém que me ajude. — Agarra-lhe as pernas e chora como uma criança.

O homem sofre de dor verdadeira. As costas magras, a pele envelhecida de sol e sal; debate-se no seu desespero como um peixe fora de água; no chão, chora em fúria, rasga-se em cólera. A desesperança consome-o.

Justino quebra. Coloca-lhe a mão sobre a cabeça, contacto que imediatamente acalma todo aquele desespero.

— Vai no caminho das ebanáceas. Lá, senta-te e espera.

Justino voltou para a sua cabana. Acendeu o seu cachimbo e baforou como quem respira fundo, reflectindo. A sua fraqueza enfraquecia. O ódio por toda a gente desvanecia; a compaixão crescia em força. A pouco e pouco se tornava um ser sensível e benévolo.

Através da sua ligação com o exotérico, a terra, o céu, a conectividade com o não visível poderia ajudar de forma solidária estas pessoas que eram sopradas pelos ventos para perto dele. “E porque não ajudá-los?”, perguntava-se.

Ainda de cachimbo na mão, dá uma baforada mais forte para reacender as cinzas, para que a brasa renascesse e acalentasse os seus pulmões. O fumo denso, branco, dança no vento.

Ao sair da sua palhota, as estátuas de ébano preto, brilhante, as suas lanças viradas para o céu, os corpos esguios de postura firme. Justino olha-as e acena confirmando que irá ajudar este ser, este corpo, desalmado.

Despede-se do cachimbo com uma última cachimbada. Dirige-se pelo caminho das ebanáceas ao encontro daquele homem perdido. Vê-o ao longe, sentado, soluçando, as mãos entre as pernas, cabisbaixo.

Ao aproximar-se, contorna o poço com a sua bengala desenhando um só círculo que acaba perto daquele homem. Do fundo do poço ouve-se o bater das ondas do mar. Do seu desespero ouvem-se as ondas do mar.

— Foste almadiçoado, meu amigo. Com sal se cura, mas também mata. O amor é doce como mteke, mas também pode ser amargo como caroço de papaia.

— Não estou doente, meu pai. Não fui amaldiçoado, fui abençoado. Do fundo do mar vi um mundo, de onde inventamos monstros, mas os monstros somos nós, descobri.

— Monstros têm muitos nomes. Chamam-se de ganância, poder, exploração, dinheiro. Mas também o amor. Fala-me mais dessa tua dor, o que perdeste?

— Era de manhã, madrugada. peguei no meu barco e saí como todos os outros dias, antecedendo o acordar do sol. Nessa manhã ouvi uma guitarra dançando a dança das cordas, achei que era música da minha cabeça, mas era o som do mar profundo desaguando na praia, chamando-me. Hoje eu entendo.

— E o que aconteceu depois?

Justino tocava-lhe no lombo sentindo as costas magras soluçarem de dor. À medida que a história se contava a bengala afundava mais fundo na areia. A voz dele aprofundou. Sentia o poder de Justino em contacto consigo.

— Do meu barco, arremessava as ondas e despedia-me da costa, da minha terra, agradecendo a São Pedro e a São Marçal por me deixarem ir.

Quando lancei a rede, já o sol raiava. foi aí que senti um puxar, como se algo prendesse a rede., tinha de a puxar e lançá-la de novo. Ao chegar-me à linha do mar, para alcançá-la, ouvi-a.

— Quem? — perguntou Justino.

— Ela... que me cantava desde a beira do mar. Puxou-me no seu nadar. Quando deu por mim, afundava nas águas movediças, cego como um peixe de águas profundas. Era uma âncora de escamas que me puxava, âncora sorridente e bonita chamada de Iemanjá.

Justino ouvia a história dele curioso. Dos olhos do pescador um brilho, reflexos de luz como nas ondas do mar. O seu corpo enquanto falava mexia-se como um ser apaixonado, mas esmorecia rapidamente. Aquele homem morria aos poucos e só aquela história o mantinha vivo.

— Quanto mais fundo mais bonito. Quão encantado pode ser esse mundo de água. ela abriu as portas daquela cidade. uma cidade protegida pelos recifes, mulheres peixe, crianças de cauda e barbatanas. Banquetes de conchas e crustáceos, o vinho, o vinho, meu pai, um encanto. Fizemos amor. Entreguei-lhe a minha alma com tudo.

O pescador respirava com dificuldade, como se ele próprio se transformasse em peixe.

— Depois uma embarcação içou-me. Entre gritos acusavam-me de bêbado, inconsciente, irresponsável. Fecharam-me em casa, trancado por fora: rotulado de velho e louco. Dizem que queria morrer, mas é tudo o que eu não quero. Quero viver, meu pai. Ajude-me.

— A morte é vida, a vida é vida. Eu oiço-te. oiço as ondas na tua dor. Ouve-se do poço as ondas da tua dor.

— Deixe-me entrar nesse teu poço e pelas águas remarei até lá, de volta à minha alma. A única loucura é ficar em terra.

— O meu poço é água doce, meu amigo, o teu amor salgado. Não te consigo ajudar — Justino continuava — És mais pescador que homem, mais mar que pássaro, a tua alma não te fugiu, transformou-se. Transformou-se em mar fundo. chora, meu amigo. Chorar extrai o sal de dentro que te lava as mãos.

— Como volto? Como choro? As minhas águas secaram. Todo o meu sal ficou lá.

Justino apontou para o poço, retirou a bengala afundada na areia que media a profundidade da dor daquele homem. Ouviam-se as ondas do mar baterem revoltas nas paredes, a água ressaltando para fora. De dentro do poço, um mar revolto que não assustava o pescador que caminhava na sua direcção.

— Atenção, esse mar não te trará ninguém de volta, poderá nem te trazer de volta. O mar está assustado. Quando beberes dessa água o corpo secará e tu lutarás. É uma prova de vida. Uma nova vida ou vida nenhuma.

O pescador já se encontrava sentado com as pernas para dentro. Olhou uma vez mais para Justino, agradecendo. Saltou sem hesitar.

As ondas acalmaram, a água do poço adocicou e de um breve silêncio, um choro. Justino aproximou-se e encontrou o pescador sentado a um canto curvado; segurava um bebé no colo. Olhava-o com carinho, as lágrimas corriam-lhe o rosto.

— Não posso viver no mar, agora entendo, mas o mar deu-me um filho, meu pai. Chamo-lhe de Janaína, em memória a sua mãe. Janaína cuidará de todos nós, pescadores, se nós cuidarmos do mar. Agradece a Justino quando ele voltar.

Justino sorriu. Sentiu o seu coração aquecer por aquele colo. Aquele amor paternal que se tinha esquecido.

Nesse dia, mais tarde, Justino visitou a campa do pai e chorou a saudade.