Sempre que ia a casa da mãe, a mãe insistia em fazer peixe cozido com brócolos para o jantar, porque desconfiava que a por enquanto nora, uma vez que o divórcio ainda não tinha saído, não lhe dava nada disso, apenas aquelas porcarias fritas e congeladas para não ter trabalho e que só faziam mal.
O amor, para ela, tinha saído numa dose mal medida, depois do filho ter emigrado, depois do marido ter ido embora e depois da doença, ainda procurava nas redes sociais olhos para o seu corpo, sem resultado, as pessoas pensam que o insucesso se pega, esquecendo-se que a gravidade engelha a pele e que os dentes amarelecem e se tornam frágeis, ainda assim, tinha esperança num resto de vida a preços de oportunidade, fazer parte de uma história em que o elenco não saísse antes do fim, porque a morte, quase sempre, separava mais vezes do que se pensava, embora isso fosse uma preocupação menor, a morte doía menos se a levasse abraçada a alguém.
Sentiu sempre a falta dele espalhada pela casa, especialmente na cama onde o amor a deixou sempre de joelhos e daí para cá esperou que aparecesse alguém para lhe baralhar a memória, que lhe fechasse as cortinas dos olhos e deitasse fora a chave dessa névoa passada em que fora gente.
Gostava de ter sido uma personagem de filme, uma qualquer, no cinema amava-se ou faziam-se coisas à distância com os olhos sem poiso certo ou com ele nas próximas cenas, com o público à espera do grand finale, mas era míope, custava-lhe a reconhecer um amor mesmo quando estava diante de si, o marido esbarrara nela, literalmente e foi pelo cheiro, pelo hálito quente e neutro, depois foi uma questão de pele, arrepiava-se quando sentia os dentes dele nas costas, nos ombros, a puxarem-lhe o lóbulo da orelha, arrepiava-se ainda, sempre que pensava senti-lo em si, um só corpo com duas metades coladas.
O filho, por sua vez, gostava de ter tido um narrador para a sua vida. Sempre achara piada aos narradores que sabiam tudo o que ia dentro da cabeça das personagens desamparadas numa espécie de redenção, das alegrias à infelicidade com hipocrisia e compaixão à mistura, alguém que falasse por si, desenvolvesse os episódios e as cenas e lhe desse alguma unidade interna.
Os dias, embora se sucedessem, não eram todos iguais, tinham feitios, eram de humores. Uma manhã de segunda, em Agosto, não era o mesmo que uma segunda de manhã no Natal. Imaginava, por isso, quando fosse mais velho, fazer finca-pé nos dias e estendê-los, uma vez que entendia que a humanidade não era mais que tempo e linguagem, com alguma memória à mistura e depois morria-se e deixava-se cá a merda toda para limpar, sem ninguém encarregue pela mudança, com a culpa a morrer solteira, não necessariamente virgem.
Em tempos, mantivera uma relação já com muitas dúvidas e tentativas, um ensaio de laboratório, que não resistiu ao tempo por parte dela e a uma universitária de piercing no umbigo por parte dele, que, por sua vez, também não resistira à sua falta de cultura e ao facto de ela não saber fazer molho béchamel, condenada à partida, a uns metros de escrita e vontades do narrador, quando num dourado domingo de outono, enquanto na cidade as pessoas viviam, sem história, no Centro Comercial, ele despejou um par de boxers, o computador portátil e uns livros para dentro de uma caixa de cartão que enfiou dentro do carro e se fez à estrada, para onde o tempo fosse manso e pudesse começar tudo de novo.
Morreu, pouco tempo depois, numa curva feita a direito, com um sorriso que ninguém notou. Só comentaram que havia pouca gente no funeral.