As mãos que costuram são os olhos;
As agulhas, o pensamento;
O tecido, o próprio ato de existir.(Andreone T. Medrado)
Três pares de mãos e a tessitura. A linha que une as gerações é a linha que tece a vida. Simboliza e significa a existência. A família. A história escrita no movimento das agulhas expõe as belezas, curas e amores. Faz a volta, passa por dentro, ajusta o nó na agulha, passa por baixo, laça e volta, entra por cima... Repete. De novo. Até compreender. É a meditação das mulheres desde sempre. Algo mágico e simbólico acontece. O gesto manual de tecer apresenta um registro das marcas da genealogia feminina. A entrega e conexão ao movimento é a possibilidade de ressignificar a subjetividade.
Como um fio invisível, o feminino está entrelaçado e não se perde de sua essência nas turbulências externas de sobrevivência, na insanidade de comportamentos lineares e solitários, ou na velocidade de uma vida sem sentido. Este mesmo fio é o que as une ao calor do útero que gera não só a descendência que respira, mas também nutre a criatividade que se manifesta em projetos e asas. Três pares de mãos e a tessitura como a obra prima de uma aranha que reverencia a arte de viver.
A avó Maria aprendeu com a mãe, Maria, que aprendeu, por sua vez, com a mãe dela, Maria. A tia solteira, Maria, também ajudou. As irmãs e primas faziam a mesma coisa. A hora do bordado como círculo sagrado entrelaçava não só os fios, mas as tramas de todas as mulheres daquela linhagem.
A avó tecia como as Moiras. Acreditava em uma profunda e misteriosa lei que regia o destino de todos os homens. O trabalho não podia ser desfeito. A sina é irrevogável. Assim como as Moiras, filhas das profundezas da noite, a avó continha a sabedoria do poder mais antigo do Universo, a força da ancestralidade.
-Maria, vai junto com as irmãs preparar o enxoval. Com tantas mocinhas na casa, já vai ter casamento em breve. – Lembrava a mãe da aceitação da vida.
E Maria seguia o destino. O matrimônio era o sonho possível para sua época. Casou-se com um primo distante que a sorte uniu numa festa tradicional da cidade. Apaixonaram-se e logo recebiam as bênçãos das famílias. E suas vidas foram bordadas de alegria e amor. Nasceu Mariana, filha tão desejada. Mas como há uma força invisível que parece precipitar repentinas mudanças, Maria viu-se viúva com poucos anos de casada. Fez seu luto e teve forças para seguir e criar a filha envolta a atenção e cuidados.
-Mariana, vem cá, vamos bordar juntas uma linda história? – Lembrava a mãe do encanto da vida.
A tecelagem unia mãe e filha, mais uma vez ressignificando, entrelaçando e criando, como sempre.
Mariana cresceu com muita gratidão a tudo o que pôde ter. Era terna e grata a Maria, que a criou sozinha, sustentando a sua verdade e o seu sentimento.
Mariana viajou o mundo e conheceu muita gente. O coração romântico soube quando encontrou o amor no labirinto da gótica Catedral de Chartres, na França. Mariana tecia com o fio de Ariadne. E chegou até o escolhido pelas linhas da imaginação. Desta viagem, nasce um compromisso feliz e Marina, o fruto da união dos dois que se conheceram em um caminho simbólico que conduz o buscador ao seu próprio centro e depois o leva de volta para o mundo.
Pelos labirintos da vida, os fios conduziram Mariana e Marina vida afora em narrativas de afeto, rebeldia e subversão. A geração de Marina, mais autêntica, desbrava o mundo costurando experiências, dissabores, aventuras e protestos.
Marina tornou-se independente, teve muitas oportunidades e sentia-se livre e feliz. Com uma forte imaginação criativa, era muito intuitiva. Observadora e centrada, possuía energia suficiente para ir além da trama, e sentia sua tecelagem como um caleidoscópio com infinitas possibilidades, cores e formas.
-Marina, me conta da exposição na Holanda com seus mosaicos de tecidos. – Lembrava a mãe da arte da vida.
Marina tecia como Penélope. Fazia e desfazia. Usava a sua esperteza e intuição não para esperar por alguém, mas porque assim bem entendia. Esperava pela hora que apetecia fazer as coisas. E enquanto isso, criava. Tecia e criava. O cuidadoso trabalho que resulta em algo maior, novo, que não é a simples soma de diversos fios e tecidos unidos. E que pode também ser desfeito.
Em Marina está Mariana e Maria. E ela tece, borda, costura, trama, entrelaça, perde e acha o fio da meada. E no seu pano-texto cria as próprias narrativas. Nas memórias contínuas de um tempo circular, a herança latente e o atavismo feminino são os símbolos de uma linguagem de outra ordem, que ela honra ao viver quem simplesmente é. Marina. A viver as entrelinhas do tempo de Ser.