Há algum tempo me deparei com o conceito de família (o conjunto de parentes de uma pessoa), que em sua plenitude não se compara com a iniciada pelos meus pais, minha infância, o que devia ser nossa essência.
Vez por outra concilio essa definição à de honra atribuída no livro Sá Teles, o educador ao professor baiano Sá Teles, que diz:

A honra é como o vidro!

Um desacato, uma ofensa à nossa dignidade, uma injustiça ou calúnia pondo em risco a amizade, uma tragédia armada, um distrato na pecúnia, uma agressão impensada, e... – lá se vão a paz e a honra para se reverter jamais, pois “a honra é como o vidro: – quebrando não solda mais!”

(Coutinho, Maria Tereza Reis de Azevedo. Ed. 2012)

Foi o que ocorreu com a minha família lá nos meus 4 a 5 anos de idade, quebrou: uma ofensa à dignidade, frustração, desapontamento – desilusão.

O caminho para muitos desse vidro, às vezes cristal, é a rua, o sofrimento como meio de que a responsabilidade por sua vida seja de alguém, de um parente, do amigo e da própria rua, nesse caso sinônimo para a desilusão.

A pessoa que opta pela rua se torna alcoólatra, usuária de droga, pede esmola para continuar drogado, cai na desgraça da pinga pelo amor desiludido ou por rejeição dos familiares, amigos, que muitas das vezes nem sabem desse sofrimento ou dessa “responsabilidade”. Outros navegam pela vida buscando reconstruir, remendar o cristal, mas não solda mais. Os filhos serão muitas vezes desajustados, longe de absorver a responsabilidade sobre tal família.

Tais modos de vida - escolhidos ou forçados - não inspiram na sociedade em geral a mesma compaixão sentida pelos animais de rua, a dó por um cão ou por um gato largados à mercê de seus destinos como bichos na natureza. O morador de rua não é enxergado da mesma forma ao olhar dos transeuntes, fica largado na calçada, embora a fome e a sede sejam pontos comuns.

Já ouvi muitas histórias e numa delas me identifiquei. A pessoa foi para Brasília, saída do interior. O aviso do endereço foi por carta, que os pais confirmaram ter enviado, mesmo com toda a parafernália digital. Chegou na Rodoviária Interestadual após 38h dentro de um ônibus cata-cata – desses que não podem ver uma barraca escrito "passagem" que param 10 minutos, nem que seja para pegar somente um passageiro. Viajaria em pé perto da porta do banheiro.

O interiorano não reconheceu o local de desembarque, porque lembrava da primeira viagem feita quando criança para o DF da Rodoviária do Plano Piloto, que hoje serve algumas cidades do entorno e as linhas circulares que são integradas ao Metrô, BRT... Perdido, tarde da noite, guardou o endereço no bolso de trás da calça e buscou conforto numa das cadeiras de plástico para usuários e dormiu.

5h da manhã levantou assustado com o barulho da enceradeira industrial que o servente usava para limpar a área de passageiros, provavelmente conterrâneo da terrinha. Ele foi ao banheiro e de lá iria encontrar com a irmã casada com um cunhado bem empregado, morador da cidade do Gama.

Pegou o ônibus errado e foi parar na Rodoviária do Plano Piloto. Lá informaram que aquele endereço no papel, sem o nome da cidade-satélite Gama, só podia ser no Paranoá ou em Itapuã em direção à Planaltina, logo após os Palácios do Jaburu, STF etc.

Estava indo na direção oposta.

Já à noitinha, como dizem no sertão, por volta de 18h, conseguiu de fato pegar o ônibus para o Gama e o tal do endereço amarrotado não era legível no número da Quadra do SMA – Gama lembrava de cabeça.

Dormiu no banco de um ponto de ônibus, e já desolado comparando que o gasto com a viagem daria para comprar dois porcos, apuraria o dinheiro de um e a outra banda alimentaria parte da família, o outro ia cevando pro fim do ano vender por um bom dinheiro pro povo da cidade grande que sempre visita os familiares no sertão e daria para fazer a roça do milho, da abóbora, batata doce... Custeando a seca, óbvio, comprando rações e até "lavagem". Assim, foi seu roteiro da volta – encontrou a irmã, fez alguns trabalhos e com a ajuda do cunhado voltou para a terra natal.

O que me aproxima dessa história é justamente a vivência de parentes, e a seca cantada em versos e prosas traz nostalgia, poucas lembranças, mas lembro que toda vez que meu pai se levantava financeiramente seja em Brasília, Rio, São Paulo, o destino com a nova família de cinco filhos de 7 a 12 anos era o sertão. Fez tanto que voltou largando os grandes centros, as grandes cidades de "oportunidades".

Comparando horários

Na cidade grande, o trabalhador acorda às 3h, chega no trabalho às 8h, vai até às 18h, com intervalo de 1h para o almoço. Se joga num trem de volta às 18h30, pega muitas vezes mais dois ônibus, chega em casa por volta de 22h; 50% do salário pagam aluguel.

Sertão

O sertanejo acorda às 3 ou 4h, tira leite das vacas, faz o pasto, prepara os roçados, toma café por volta de 7h (as mulheres cuidam desses afazeres voluntariamente); após o café vai às compras de ração na cidade mais próxima, ou em outra que tenha o produto necessário para a rotina de trabalho. Almoça por volta de 11h, relaxa numa rede até às 15h. Volta à roça para cuidar do gado, cavalos, galinhas, porcos, pastagens, roçados – propriedades dele. A despensa é abastecida de frutos, legumes, verduras, ovos... 16 a 17h tomam um cafezinho. Às 18h, familiares e amigos se unem em círculo sentados em cadeiras de balanço, e a prosa só é interrompida por um celular (a grande novidade, vício de alguns).

As pessoas dos centros urbanos acham que entendem da seca, de agricultura, da vida cotidiana das famílias que vivem no sertão. Ledo engano.

Elas devem ir conhecer o sertão para entenderem o dia a dia dessas pessoas que trabalham de sol a sol, e se mantêm firmes nos seus lugares, terra talhada por seus antepassados.

A música dos compositores Marcos Cavalcanti de Albuquerque, José Pereira Guimarães e Manoel José do Espírito Santo, chamada Último Pau-de-Arara1, consagra no verso essa labuta, paixão por sua terra, por seus familiares, por suas raízes fincadas nesse chão:

Enquanto a minha vaquinha
Tiver o couro e o osso
E puder com o chocalho
Pendurado no pescoço
Vou ficando por aqui
Que Deus do céu me ajude
Quem foge à terra natal
Em outros campos não para...

Essas famílias têm um amor extraordinário por suas conquistas. Cada cisterna com água potável, mesmo que a um quilômetro distante de suas casas têm mais valor que uma pedra que dê uma barra de ouro descoberta no quintal; é um deleite beber a água pura, límpida em copos tradicionais de alumínio. A distância é o de menos, porque é percorrida pelo cavalo mecânico, uma motinha CGC 125 Honda ou de outra marca.

Óbvio, existem os cavalos que são usados para outro tipo de serviço ou prepará-lo para rodeio, considerado um dos melhores eventos entre 'vaqueiros'. A família grande ou pequena, cada qual tem sua rotina mantendo o dia a dia e não falta o que comer, compartilhar com os parentes, com as famílias vizinhas, amigos e primos distantes – fulano é parente porque meu avô materno foi casado com a prima de nosso avô paterno –, daí o parentesco.

A vizinhança também se avoluma à noitinha ou por volta do meio dia na varanda ou na cozinha. É um encontro normal, lúdico, às vezes os "chegantes" almoçam, e vêm ou vão levando boas novas de um filho do amigo, primo, sobre algum ocorrido nas cercanias dos sítios ou fazendas, cidades e até de outro estado. Talvez recado do médico do posto, enfim, mesmo cada um tenha seu aparelho celular, o que vale é o que fulano filho de sicrano disse ontem, ou agorinha "pra mim".

Há muitos anos queria conhecer e ainda estou conhecendo os familiares por parte de pai, em busca de acrescentar à arvore genealógica. As histórias sobre meu avô dão um livro de tão surpreendentes e do homem fincado na terra como um componente somado à natureza.

Num primeiro instante, ver as pessoas felizes é um choque diante de tanto calor, temperatura acima de qualquer média distante do sol, que queima. A esperança suplanta a imagem espelhada no conhecimento dos ancestrais, que vem logo após o primeiro dia de ano novo, caso apareça nuvens espessas indicadoras de que o inverno dará boa colheita no ano que se avizinha.

Percebi duas, e a segunda ocorreu uma chuva temporão de 5 minutos apenas, gotas da anunciação que molharam primeiro a Igreja Nossa Senhora do Carmo, que vem sendo levantada há mais de 30 anos, e está quase pronta. Após essa breve molhada nas poucas árvores da vila, distrito de Várzea Grande, vários tipos de pássaros surgiram como cântico da boa nova – desde beija-flores, Lolinhas, São Francisco, Papa Capim e Suriri (este, com chuva de um mês, se soma a tantos outros encantando o campo).

As pessoas têm rotinas totalmente diferentes das pessoas da cidade, daí eu posso afirmar que os urbanos não entendem e tagarelam tanto sobre sertanejo ou seca como se blasfemassem.

O trabalho é muito diferente, tanto é que denominam de rojão; é um sinônimo assustador, porque você tem que ter disposição e força. Às 18h começa a prosa e acaba às 20h; e, todos vão dormir. A maioria por volta de 2 a 3h da manhã levanta para tirar o leite. Outros dão uma força, e ajudam a cuidar das áreas de plantio daquele que ficou encarregado do leite. Trabalham de madrugada porque mesmo o clima sendo quente, nesse horário é menos agressivo.

As mulheres cuidam dos afazeres domésticos, café na mesa, limpeza da casa inteira ‒ a que estive tem oito cômodos, cozinha com mesa para 30 pessoas, quintal, varanda, e elas vão dar aulas nas escolas por perto ou na cidade, que dista 8km do distrito, zona rural cabe melhor.

Enquanto visita, fiz o que pude dentro do meu parco conhecimento sobre sertão, mas com bom know how adquirido desde a infância, ajudar a cuidar da casa, e também pelo fato de ter sido restaurateur. Então fui à labuta. Carreguei água da cisterna para o filtro, lavei louça, varri a frente da casa e a área do quintal, tirei os plásticos jogados no chão das áreas próximas aos galinheiros, e criei uma ocupação que me deu prazer.

A prefeitura criou nessa zona rural a Academia da Saúde numa praça em frente dessa casa que fiquei. Tem vários aparelhos, básicos, e ao lado um pequeno jardim como adorno. Esse trabalho, o de aguar as plantas, não foi diário porque eu dependia da água encanada de rua que faltava vez em quando na torneira instalada na base dessa academia, para que os usuários aguem o jardim e as árvores já com um metro de altura.

Agora, orgulho mesmo é ver a professora Maria, a primeira mulher de Lourenço (única esposa, são casados há 61 anos). Ela completou 76 anos no dia 2 de janeiro de 2025, e é mãe das também professoras, as outras duas mulheres de Lourenço, que são suporte da lida diária dentro de casa fora à da escola. É rojão, menino! Dona Maria acorda às 5h, vai fazer de tudo um pouco e as filhas gritam com ela para diminuir o esforço por conta da ponte de safena, “construída” a pouco tempo. Que nada...

E a luta, nossa que emoção! Cito esta palavra tão banalizada nas cidades dos sindicatos das mesmices, das politicagens... É luta das três mulheres de Lourenço, marido e pai, que sofreu um AVC que afetou muito sua saúde e seu dia a dia. Uma das filhas, assim que acorda, começa a fazer logo cedo uma tarefa, já feita em sua casa vizinha, a outra cuida da que falta, e as tarefas são eliminadas até a hora do almoço, mesmo que na parte da tarde uma delas se incumba das roupas – lavar e estender. Elas não se fazem de rogadas.

Este agravo na saúde do patriarca faz as mulheres de Lourenço terem mais gás, combustível extra, potente. E com a ajuda dos irmãos não falta um que se esmere num fio de cabelo de carinho, esforço gigantesco para que "papai se sinta ainda o homem que nos trouxe até aqui". Lourenço, mesmo incapacitado dos afazeres no sertão, há dois anos virou marca da família, desde sempre muito respeitado e amado por toda a família e pela vizinhança.

Vi e torço para que as mulheres de Lourenço, aí incluo as noras que são pessoas boníssimas, possam chegar aos corações de todos; é uma semente forte, sedutora, aguerrida para dentro dos lares.

Confrontando à minha família, lá quando fui criança, meu pai tentou remendá-la, mas foi como o cristal que se quebrou, este início de seio familiar não teve, não tem remendo.

Conhecendo esses bravos parentes por parte de pai, há por mim o carinho, a felicidade do parentesco de uma família exemplar em todos os sentidos. As mulheres de Lourenço reforçam o alicerce, a família. Que nos traz a confirmação de que todo dia é dia da mulher capaz e presente.

Sobre o sertanejo creio que a tendência é fixar raízes. Afinal, o sec. XXI traz novos ares diferentemente de quase 100 anos atrás.

...Vou ficando por aqui
Que Deus do céu me ajude
Quem foge à terra natal
Em outros campos não para...

(Versos da música "Último Pau de Arara", de Venâncio, Corumbá e José Guimarães, 1956, sucesso desde então na voz de vários cantores)

A composição mostra que o "cabra" só sai de sua terra em último caso, e hoje, os mais novos que vão estudar nas grandes cidades, retornam às suas origens como profissionais de medicina, odontologia, advogados, administradores de empresas com pós em políticas públicas. Ou seja, o "sertão vai virar mar" de ótimas famílias bem assentadas e felizes com suas origens.

Nota

1 Caminhão para transporte de pessoas com assentos de tábua, composto por varas cobertas com uma lona; as pessoas que viajam nesses caminhões saem do Nordeste do Brasil em direção ao Sudeste do país em busca de emprego, trabalho.