Ele conhecia-os bem, a todos. Conheceu o quarto de aldeia de Cabeça Santa, o mais ligado à infância, às recordações, ao céu do meu nascimento. É o quarto que tem o telescópio e a viola e as caixas de música, os peluches e o escorpião em sol maior, além dos gatos múltiplos que se espalham em fotografia e desenhos a carvão. É também o quarto onde figuram os meus primeiros quadros a óleo, que me relembram o “jogo da glória” ou o pinhal de Leiria, onde passei férias desde os quatro anos. É o quarto onde tudo pode acontecer, desde o debruçar-me na janela e perfumar-me com limões e figos até conversas vadias e tardias… é o quarto onde já fiz e desfiz laços, onde já ouvi as histórias mais mirabolantes e onde os cogumelos do jardim da Alice podem crescer e ter pintas, isto é, sardas toda a hora. É ainda o quarto onde me demoro a escrever; onde guardo a minha colecção de “bonecos” dos gelados “olá” e onde me aparece a imagem da Menina dos Anéis, como eu era conhecida na infância.
Depois, chegou o quarto da adolescência e juventude (onde moro ainda…), cheio de coisas trepando pelas paredes até ao tecto. Papeis, papeis e mais papeis. De novo muitos aneis espalhados na mesinha de cabeceira e muita ternura concentrada no gato preto pirata de argola na orelha, em cima da cama. Cartas, envelopes, postais. Aí bati o recorde: 6h ao telefone seguidas; sonhei com Anjos e também com Cristo, de olhos azuis comovidos. Foi também o quarto onde alguém já se deitou como enfermeiro quando tive um acidente que me machucou o joelho. Foi nesse quarto que o Amor e o ódio estiveram de mãos dadas e que o Orgulho separou. Foi nesse quarto que a vida aconteceu e se acabou; que o Renascer do Verde, o meu primeiro livro, foi escrito, em 3 dias, à janela. Foi nesse quarto que a metamorfose tomou conta das metáforas e que a menina exemplar e sossegada se tornou a Metáfora Personificada.
É nesse quarto que o Anjo da Guarda é mais meu. Continua a ser nesse quarto de encontros e de separações que mais viajo. Viagem sem regresso e outras sem fim. O Egipto e a Índia são estações principais onde de vez em quando tenho de ir respirar. E depois há os cheiros, os perfumes misturados com os odores dos livros, já de si essências raras…, mas ainda há outro quarto.
Quase um quarto secreto onde raros espécimes conseguem penetrar. É o quarto romântico muito azul, muito veludo, onde se pode acreditar em tudo porque existem espelhos e caixinhas de desejos e até o computador, que tudo pode ligar até àquele quarto sem fronteiras, à beira-mar. Segundo um meu amigo, conhecido em África por Mata, o feiticeiro, eu precisava de um outro quarto. Um quarto que me pudesse fazer realmente feliz. Um quarto sem papeis, cartas ou recordações, mas decorado a mel e construído de raiz, a dois. Um quarto suave onde o sorriso rimasse com silêncio e o corpo com a alma e as mãos com o coração. Um quarto que tivesse as paredes tatuadas de impressões digitais muito amadas e um tecto com estrelas e um chão de pétalas. Um quarto onde o meu Jardim possa acontecer.
Todos os quartos têm caixinhas de música, caixinhas de beijinhos e estrelas-do-mar, caixinhas de recordações…, mas só num desses quartos eu sonho. O quarto onde nascem trevos de quatro folhas, onde se guardam as mensagens dos ventos e onde rezo devagar. O quarto onde se queima incenso, se escrevem poemas, onde os discos rodam nas paredes e eu danço sem parar. É o quarto de uma peregrina que faz rosários de colares, ceias de hóstias e uvas americanas e que adorava celebrar missa num altar. É o quarto onde se hospedam todos os meus “eus” cómico-trágicos. O palco do riso e da lágrima escondida, do jogo da glória e da batalha vencida, dos talismãs. O quarto onde adormeço mais acordada e mais renascida. Este quarto é o selo no envelope da minha história de vida.