Cinco e três da madrugada, que finda com qualquer homem e o enfada. Da cama para o espelho havia um desencontro com o desespero: a imagem de um corpo, de reflexo torto. Essa materialidade refletida expressava uma objetiva forma de viver e observar a vida. A proximidade com o espelho fez o vidro ficar fosco. Com os dedos, o homem desenhava-se oco, no espelho torto.
Tal situação estava estabelecida dessa forma há, no mínimo, dois anos — muita condição e pouco tempo, além do excesso de ação, deixaram-no desse jeito: oco. Oco literalmente, e não se trata de uma imagem fantasiosa da mente, a que me refiro neste instante. No seu cotidiano, aquele homem era famoso: seu nome era louco.
Na verdade, ninguém o nomeava deliberadamente dessa forma, porque não precisava – aquele homem bem sabia: “não é necessário falar para deixar marcas de linguagem no ar”. Ele, que não queria ter nome, preferia ser pronome. Ou talvez até artigo pequeno e enxuto, e longe de todo formalismo do nome.
Talvez ele, em sã mente, não queria ser artigo, porque intensamente não saberia ser antecessor de qualquer substantivo. Por isso insanamente se contentava com o “ser pronome” — homem oco sem nome. O louco, fazendo da pia seu encosto, pediu ajuda ao seu profundo sentimento no espelho exposto.
Não estava sendo um dia fácil, tal como o chão continuava a reluzir enfado. A soma de tudo que compunha aquele quadro, resultava em uma camada de poeira ao quadrado – que o louco nomeava de enfado. O louco oco, refletia tal oquidez em seu pouco corpo, na pia que estava próxima do próprio rosto. Ali debruçava-se, e por fim, mais cansava-se.
Nada do que ele fazia era pouco, mas tudo o que fazia lhe dizia mais do que pouco. Suas mãos muito faziam, seu cérebro vivia de plantão, mas aquele homem já não sabia dizer “não” ao trabalho. Sabia, com razão e emoção, de algo que complementava seu ganha-pão: a canção que seus colegas chamavam de “nananinanão”, cuja letra dizia – “não, não, ele não sabe de nada não”.
Efêmero na oquidez e em um estado de miudez, eis que dos olhos fechados nos braços o mundo inteiro aquele homem fez — a água escorria de sua tez. Ouvir o som daquela água na pia bater, sentir o tom da água da tez dos olhos descer — era a sensação da estética de um imenso prazer: a liquidez do homem a arder.
Aquele homem torto na pia, oco há dois anos, ficou louco há dois dias desse ano. Ficou louco de gosto por seu sonho, que das tripas e coração fez por ele tampouco. O homem torto, por seu sonho fez tanto, que agora lhe restou descontento e desgosto. Lhe restando o gosto (ou desgosto) de esgoto do desgosto.
Esgoto no sentido de cansar, estar em desgosto no sentido de pesar — vide esgotar. A etimologia própria daquele homem oco, louco e torto tem no “desgosto” também o sentido de des-gostar — vide odiar. Esgotar e odiar, linguagem que sobrou do sonho do homem torto, que infelizmente perdeu o sentido de sonhar.
A cabeça nos braços e o corpo sobre a pia: seu olhar de acúmulo d’água se enchia. Se via em seus olhos, agora de esgoto, o desgosto que tinha consigo desse passado, na água, exposto. Tudo o que ele sonhou, gostou e até mesmo odiou, não passou de um encosto.
No encontro do corpo, materialidade daquele homem oco, com o estado dele exposto — ele o via um homem morto. Porém, no encontro da água do esgoto dos olhos sem gosto, com as águas rasas da pia, o homem ouvia: o pingo que na quina batia.
A estética algo lhe dizia. De cabeça baixa, de frente ao ralo, com água no talo, ele se restringia: “para quê falar, se meu lugar é o calo?”. Mas em alto, repensava: “Para quê vou falar estando no lugar do calo? Se este é um lugar em que tanto me abalo? Eu sei que falar é, no meu pescoço, um fardo. Por isso estou cansado, não tenho satisfação sequer para um abraço, só tenho a razão para ficar com ela casado… ou amordaçado”.
Depois do silêncio que o recinto fazia, no encontro da água dos olhos com as águas da pia, o homem ouvia o que a estética ali lhe dizia: “Homem torto, comum é sentires que hoje não é seu dia de gosto”. “Eis a questão!”, dizia o homem sabichão – “E que dia que sim? Que dia que não? Qual o critério para sentir que o dia é do gosto então?”. Eis que o homem chorão à estética gritou: “Fácil é dizer que eu deveria pensar coisas boas da vida, como se felicidade coubesse em poesia”.
Suspirou e depois de um longo silêncio, no banheiro, transpirou. A estética o pegou.
Tomado pela reação estética, o homem encontrava-se em uma extasiada inércia. Necessária, ele pensava, mas não se sentia em glória. Ao erguer a cabeça, o homem já não estava oco – estava tomado pela estética e apossado de um sentimento unívoco.
Apesar de ter se sentido louco, apossado de si, a canção de nananinanão já lhe era um equívoco. A tez marejada dos olhos, fez a alma sentir-se revigorada — ao ouvir o marulho da estética através da água ali falada, o íntimo do homem logo se embrulhava. Em pé de frente para o espelho, já não via nada.
Em súbito: “Plim, plim” — ele ouviu gotas caírem no fim. “Enfim, quem está falando comigo aqui?”, dizia ele por fim. “Eu, que sou a mãe de muitos filhos que nascem de mim”, dizia-lhe ela, a estética, com um carinho sem fim.