Essa história realmente aconteceu.
Dia 23 de janeiro de 2024, Belo Horizonte, Minas Gerais, 7h. Minha mãe, de 43 anos, levantou-se cedo com sua irmã e dirigiu-se ao posto de saúde do bairro Santa Mônica. A dengue, que já incomodava há uma semana, tinha piorado. Manchas vermelhas, como de catapora, estavam pipocando em seu corpo.
Quem diria que um maldito mosquito Aedes aegypti de 5 cm de comprimento poderia derrubar alguém? Mas isso é só o começo. O pior ainda está por vir.
Essa foi uma semana decisiva em minha vida. O ano de 2023 foi complicado. Fiz meus malabarismos e contornei situações financeiras, problemas em casa e no trabalho. A casca (da minha consciência) começava a ficar grossa, e o treinamento para ser uma “pessoa forte” já tinha se iniciado.
O tenso é que 2024 já começou com a montanha russa descendo os trilhos a 100 km/h.
Voltando ao assunto, vejamos como a semana fluiu. Após seguir para o posto de saúde, o médico disse para a minha mãe que ela tinha que ir para a UPA – Unidade de Pronto Atendimento. O caso dela estava um pouco complicado. Assim, ela e a irmã desceram de ambulância para o açougue (hospital público com demora de atendimento com média de seis ou oito horas de espera).
Ao fim da tarde veio a notícia: você terá que ficar internada e passará essa noite aqui porque suas plaquetas estão muito baixas e você corre o risco de hemorragia. Enquanto isso, meu pai vinha com o carro da cidade vizinha para render minha tia e passar a noite com minha mãe no hospital. É nesse momento que a situação complica.
Eram 18h, Venda Nova, região norte da capital Belo Horizonte. O tempo marcava uma chuva terrível. Meu pai parou o carro em frente ao hospital na Avenida Dr. Álvaro Camargos, mais conhecida como 12 de outubro. Ele decidiu ir à farmácia para comprar um lanche e produtos de higiene pessoal.
Eu [Felipe] estava em casa junto com o cachorro (Amora) vendo a chuva forte cair com raios. Eu pensava que algum estrago poderia acontecer na cidade. Só não imaginava que aconteceria com minha família. Dez minutos depois de refletir, recebo a mensagem de minha mãe falando que meu pai achava que nosso carro tinha ido embora na enxurrada.
Perguntei para ela onde meu pai estava e se ele via o carro. A avenida alagou e carregou mais ou menos uns 30 carros em direção ao córrego da região. Liguei para meu pai e ele estava desacreditado e aéreo. Ele estava mais preocupado com minha mãe do que com o carro.
Rapidamente fiz um kit com roupas, escova de dente, pasta dental, escova e decidi descer para encontrar com ele. Quando cheguei lá, nosso carro estava abaixo de dois carros. Sim, parecia uma pirâmide e nosso carro tinha batido no poste. Todo quebrado, com água barrenta, folhas, esgoto, pedras, barro e com o farol ligado.
Sempre vi pela televisão essas reportagens sobre o caos quando enchentes acontecem. Foi terrível ver casais donos de loja chorando abraçados porque sua loja estava destruída pela água. Vi alguns torcedores organizados da Torcida Máfia Azul tentando limpar um terreno. Carros estavam capotados, pessoas chorando e desesperadas. Só restavam os caminhões-guincho na rua para resgatar todos.
Mandei meu pai ir para o hospital e me entregar as chaves. Ele simplesmente disse que deixaria o carro no local (todo aberto com risco de alguém passar e roubar o restante dos objetos que estavam no veículo) e iria cuidar da minha mãe. Achei isso interessante e forte. Problemas dos bens materiais, prefiro ficar e cuidar da minha esposa. Essa foi a frase dita por meu pai.
Com chaves em mãos, tranquei o carro e retirei os pertences que ainda restavam. Ficamos até quatro horas da manhã e não tiramos o carro da pirâmide. Não dormi essa noite preocupado com minha mãe e pensando no estrago do carro. Falei com meu pai que eu ia tomar a frente e levar nosso carro para casa. Meu pai atônico agradeceu pelas roupas e entrou para o hospital.
Eu e meu tio ficamos até 4h30 da manhã para remover o carro, mas sem sucesso. Com o veículo trancado, voltei às 7h da manhã e o trouxemos para casa. O mais cabuloso de tudo é que quando voltei para o lar, eu não sabia o que fazer. Entretanto, apenas olhei meu rosto no espelho e disse: Seja forte! Agora o jogo começou. Você não pode travar.
Minha mãe passou a madrugada no hospital péssimo e foi transferida no dia seguinte para o Hospital Metropolitano no Barreiro, meu pai disse que quando entraram na ambulância, lembrou-se da última vez que entrou em um veículo daquele tipo.
Enquanto o motorista fazia 100 km/h, ele se lembrou de quando minha avó (mãe dele) teve um AVC e quase morreu. Ele foi o acompanhante naquela época. Mas ele dizia que precisou engolir a vontade de chorar e deveria focar apenas na minha mãe.
Chegando ao novo hospital que era fruto de uma parceria público-privada e extremamente tecnológico, arrumou as bolsas e conseguiu entrar no quarto. Tenho certeza de que ele estava preocupado com a minha mãe morrer. O mais interessante é que fez o papel de marido e não deixou ninguém sair de casa e trocar de lugar na função de acompanhante.
Sem banho, com as roupas do dia anterior, desceu para o refeitório que servia marmitas para os acompanhantes e suspirou. Ele também se recordou do dia que seu filho comeu um brigadeiro batizado e quase entrou em coma. Percebeu que a vida era curta e que precisamos cuidar de nossa saúde e viver com intensidade. Todos nós passaremos, mas é possível evitar que nossa ida para o caixão seja mais cedo do que imaginamos.
Enquanto isso, eu estava em casa vendo na prática a teoria de que a Lei de Murphy existe. É aquela lei que fala que se for para algo ruim acontecer, ele vai acontecer da pior maneira possível. O carro vomitava após comer páprica e tive que gastar um dinheiro com remédio antitóxico.
Sem contar a aflição de pensar que se minha mãe não voltasse do hospital. Nesse momento o notebook decide desmaiar e parar de funcionar. Virei e falei: sei que a vida tem altos e baixos, mas puta que pariu.
Na sexta-feira peguei minha moto com mais roupas para meus pais. Burlei o sistema de entrada de objetos do hospital e levei o remédio de pressão do meu pai. Às vezes é necessário burlar as regras para realizar algumas atividades.
Conversei com meus pais durante quatro horas sobre como as coisas estavam em casa. Mais aliviado, rimos um pouco e percebemos a melhora da minha mãe. Posso estar errado, mas deve ter alguma explicação científica de que a visita da família melhora o quadro do paciente.
Após minha tia e avó chegarem, fiquei com meu pai na recepção e conversamos de homem para homem, ou melhor, de pai para filho. Conseguimos falar sobre gatilhos, ser forte, controlar sentimentos e emoções em situações caóticas. Além disso, discutimos sobre a futilidade de bens materiais e como a vida não vale nada. É que nem o ditado: para morrer, basta estar vivo.
Aprendi com meu pai que em algum momento eu precisaria ser forte. Esse momento chegou. Os dias maus chegam para todos. Não dava para travar ou desesperar. Era necessário agir.
Era necessário que alguém fosse frio e calculista para resolver os problemas da família. O filho que foi treinado para situações como essa precisou ser chamado e passou no teste. Era um teste de como ser homem, ser forte e maduro.
Eu passei. Mas sei que o trem da vida passou apenas por mais alguma estação. As primeiras estações com problemas crônicos sociais e pessoais começaram lá em 2017 quando virei jovem aprendiz e percebi como o sistema capitalista sucateia a mão de obra e os pobres estão programados para morrer.
Tem também a estação da realidade social que segrega, discrimina e manipula os indivíduos. Tem a estação das finanças, que a cada ano não são suficientes para acompanhar a alta dos preços por causa da inflação. Além disso, tem a estação da violência, do trânsito caótico, dos meios de transporte ruins e da desigualdade.
Em meio a essa minha viagem sem volta na terra que deve durar até no máximo 100 anos, aprendi a ser forte. Ser forte é trabalhar, amar família, conquistar, reconquistar, resolver problemas e estar preparado para os próximos que brotarão cada vez piores.
Ah, minha mãe melhorou. Ela voltou para casa. O carro continua destruído e meu pai saiu do trabalho. Como vamos fazer? Não sei. O meu sincero "um dia de cada vez". As coisas se acertam. Já passei por coisa pior. Isso é fichinha! A casca está grossa.
Depois de tudo, acredito que a tendência é que a gente fique mais esperto ou preparado para o que vem pela frente.
Pode ser que na data de publicação deste texto as coisas tenham melhorado ou piorado. Vai saber!
Assim, tenha sempre por perto uma taça de vinho ou um copo de cerveja para comemorar os bons momentos e um café para aguentar os maus.
Às vezes estamos lá em cima e às vezes lá embaixo. Faz parte.
É o famoso "um dia de caça e um dia de caçador".
Aproveite a estadia (no planeta terra).
Acelere a moto, mete marcha e vai.
A morte é inevitável.
Vida a vida!