Bruxas. Na minha terra havia reuniões de bruxas no rio, debaixo de uma ponte. Já houve muitos a ouvi-las rir, entoando cantigas ufanas pós meia-noite.
Na manhã seguinte, todos prestavam atenção a quem trouxesse o cabelo ainda molhado. (porque que as há, há!)
Sim! Hoje vim falar-vos de mitos. Não se preocupem, não sou um tolinho dos ocultos e dos paranormais. Vá, talvez seja um pouco, mas juro que é só em noites de lua cheia.
Mas não fiquemos só pelas bruxas! Abandonada às heras, para que elas esculpissem dela o que quisessem, havia também uma casa. Diziam os antigos “ali é que os da câmara municipal nunca construirão passeio por aquela rua”.
Perguntei-lhe: “Porquê, tio Manel?”
Simples. O telhado da casa nunca foi acabado. Sempre houve gente disposta a fazê-lo, os primeiros proprietários, e depois os seus filhos, e depois os filhos destes e depois os filhos desses, e depois os outros, até já não haver nem mais filhos, nem mais depois.
Reza a lenda que a tragédia vai sendo herdada juntamente com a casa: de geração em geração. A sabedoria popular diz que é sempre assim, seja em casas, ou fora delas.
Ah, e claro, para além das bruxas e da distópica casa, não me posso esquecer do lobisomem! Também havia um lobisomem.
Diziam que o lobisomem vivia nos arredores da vila, numa pequena casa abandonada. E deixem-me que vos diga: não havia local mais apropriado. A estrutura do estuque a cascar mostrava o seu esqueleto feito de tábuas de madeira, desgastada, tanto pelo tempo, como pelas eventuais térmitas. A porta, de certeza que rangeria se ainda a tivesse, mas não tinha. E, para acréscimo de cenário, a moradia parecia que tinha sido encaixada à força entre cinco sobreiros imponentes.
Ali, enclausurada entre a sombra carrancuda dessas árvores, jazia a dita “casa”, já a resvalar, no terreno sobranceiro, elevado, com vista privilegiada para o povo adormecido.
A sensação de abandono era notável, de certa forma, até intrigante. Como se algo não estivesse certo. Com umas décadas a passar, construíram muitos edifícios novos à volta, mas nunca a deitaram abaixo... O que só aumentou a sensação ominosa de deslocação que ela transmitia.
Mergulhando nas trémulas águas do passado: bruxas, casa assombrada, o lobisomem e o seu lar... Todas estas coisas foram existindo enquanto puderam, até eu entrar na adolescência. Até eu e os meus conterrâneos, da mesma geração, permitirmos que existissem.
Em suma, todas essas coisas existiram, de facto! No entanto, só até a nossa juventude começar a sair à rua e fazer barulho.
Aí, todas elas foram perdendo o seu espaço de concretização para o cederem a nós. Numa localidade pequena, sendo adolescente, tem que se arranjar algum local para fumar cigarros escondido, certo?
Mas, porque há sempre um “mas”, no tempo em que todas estas coisas ainda tinham um espaço para existir, éramos nós crianças, e recordo o quão notória era a excitação que fervia nos grupos quando começávamos a trocar histórias sobrenaturais. Íamos debulhando as histórias com vagar, falando baixinho, cabeças encostadas umas às outras, os enormes eucaliptos e os pinheiros vergados para nos ouvir melhor, como nossos únicos testemunhos.
Estes dias, no fundo da vila, passando a velha casa do dito lobisomem, Mateus (para os da terra), parei a pensar no que é que podia conferir tanto poder a estas lendas que, tendo em conta o tamanho do município, nem urbanas podem ser consideradas.
A verdade é que eram, efetivamente, poderosas. Transformavam muitos recantos pacatos e aborrecidos em autênticos palcos de aventuras sobrenaturais. Entrelaçavam na nossa mente a realidade e a imaginação num misterioso bailado.
Enquanto garotos, a meio das ditas conversas, sorriamos nervosos. Aquilo preenchia-nos sempre com um misto de entusiasmo frenético que não compreendíamos, mas também com o duro conhecimento de que, mais tarde, ia ser de noite. Como é escura a noite longe das cidades!
O breu lá chegava, abraçando tudo naquele escuro veludo azul. O sol desvanecia, cedendo lugar às sombras que iam engolindo tudo e aquelas coisas que ouvimos tornavam-se demasiado reais para nós. O fruto proibido castigava sempre quem o trincava. Nada de novo debaixo da lua. E os sorrisos que tínhamos trocado à luz, perante as histórias, tornavam-se em furtivos olhares cautelosos para a escuridão, e em possíveis (talvez prováveis) aborrecimentos para os nossos pais.
Ficávamos cativos da nossa própria mente.
Porém, numa pequena vila, onde não havia muito mais opções de entretenimento, estas histórias tinham muitas vezes o sabor de um luxo roubado. Isso chegava para elas se manterem, apesar de todos os receios. Já no escuro, lá se tornavam o fio condutor de mais pensamentos do que gostamos de admitir. Claro que, os mais audaciosos de nós, diziam, com o ar típico de fedelhos atrevidos, que já tinham dito “maria sangrenta” três vezes ao espelho da casa de banho durante a noite, ou que tinham jogado ouija com os irmãos mais velhos.
Os menos audaciosos, como eu, ouviam aquilo sofregamente, uma catarata jorrante de vontade da mesma experiência a correr-nos no peito e outras tantas de medo a rugir mais alto.
O que é de facto curioso, e que me parece ser comum ao funcionamento do meu microcosmo e ao nosso macrocosmo, é que todos parecemos chegar, quando crianças, a um momento em que nos acontece o mesmo processo mental:
Primeiro, começamos a ter curiosidade sobre o nosso corpo.
A seguir, como que resultado direto da primeira curiosidade, temos interesse no corpo dos outros.
E depois, uns com menos medo, outros com mais, temos essa mórbida curiosidade natural, consequente das duas anteriores, e que vem concretizar a terrena trindade: o que há para além do corpo? Do nosso e do dos outros. O que há deles quando eles ficam sem vida?
Deve ser esta a primeira grande reflexão filosófica de todos nós.
Nesta, os mitos enraízam-se profundamente e desenvolvem-se.
Mas não me interpretem mal! É que, no entanto, o ponto interessante em tudo isto, não é o quão as pessoas se interessam pelo sobrenatural, nem a rapidez com que os mitos nascem e morrem, mas sim o poder que eles têm enquanto vivem.
Sendo franco, não acredito que nada exista por acaso e os mitos, provavelmente, não fugirão a esta regra. Passo a explicar:
Na sociedade de hoje é extremamente difícil, senão inexequível, extrair os mitos da sua raiz. Perceber onde nasceu uma história.
Há, entretanto, esta pequena, mas deliciosa, exceção que tenho trazido no bolso ao longo dos anos (um autêntico tesouro, se me perguntarem) para agora deixar neste texto:
O lobisomem da minha terra, que se dizia viver no fim da vila, curiosamente, vivia muito próximo de um amigo meu. Demasiado até. Coincidências do demónio, diriam.
Do demónio seria a história... Se não se desse o caso de todas as fontes que ouvi contar a história serem diretamente ou indiretamente relacionadas com esse mesmo amigo. Adicionando a este fato, o acontecimento de ele nos confidenciar que havia sido o avô dele que lhe tinha passado o testemunho dessa história, é-nos facilitada a compreensão.
E mais... que terreno abrangia a área de atividade do tal lobisomem grotesco? Uma área consignada a um edifício alto, abandonado, ladeado por sobreiros e com carris abandonados (provavelmente da época da caça ao volfrâmio). Parece perigoso para uma criança... Quase tão perigoso como um lobisomem!
Neste caso, parece que o mito foi propositadamente criado com o nobre intuito de proteção de crianças curiosas através do medo. Foi uma ferramenta social, digamos assim. Já vimos isso a acontecer antes, seja na política, no marketing e publicidade e sabe-se mais lá onde...
Só há um grande problema neste gracioso objetivo: os adultos ignoram o quão resiliente é a curiosidade pueril. Eles não compreendem que, comparativamente a uma natural curiosidade de qualquer adolescente, um lobisomem não tem qualquer tipo de poder. O bicho quase que morre à nascença, pobrezinho! Não tinham passado nem dois meses, quando todos os garotos conheciam já de cor a casa abandonada, o largo terreno, tinham descoberto os carris e muito mais caminhos perdidos, que nem os adultos deviam conhecer na época.
Verdade seja dita: nunca encontrámos nenhum lobisomem! (Deve ter fugido. Com o barulho todo que fazíamos, não seria de estranhar...)
Mas talvez tenhamos, sem noção disso, descoberto algo mais importante:
Que as pessoas que nos amam, às vezes, nos assustam, exatamente por isso. E que outras vezes, quem tenta assustar, é porque tem mais e maiores medos.
(Fica aqui esta conclusão, como o carril perdido que descobrimos, terminando aqui num solavanco, sem se perceber bem para onde vai, ou ia).
Nós, crianças eternas, andamos ainda por aí a despir os lençóis aos fantasmas, enquanto, ao mesmo tempo, vamos assustando quem amamos.
Para o bem e para o mal, é isto que somos. E este e outros mitos acabam por ter um forte impacto na nossa personalidade e ainda bem! Porque são parte da herança que nos deixaram as pessoas que amámos e que vieram antes de nós explorar esta pacata vila mal-assombrada.