Setembro não disse ao que veio, limitou-se a trazer o vento, o imprevisto e o teu sorriso a prolongar-se noite dentro, os lábios, macios, escondidos num beijo de olhos fechados. De olhos fechados o universo perde importância e os nossos corpos, juntos, tornam-se infinitos, sem pressas, apesar de saber que não tenho noites suficientes para envelhecer nos teus braços.

O tempo é um detalhe que vai e vem, sem palavras, dentro da memória, no momento em que me esqueço dos nomes das coisas e sinto a intermitente presença da tua falta. Perco-me às metades no teu corpo e tu a tornas-te inteira numa lógica de que só a minha pele conhece a fórmula, sem raciocínio, vontade ou semântica e imploro-te que não acendas a luz para poder ver a madrugada a partir.

Deslizo as minhas mãos no interior das tuas coxas, levemente abertas num convite, devagar, subindo mansas com o arrepiar dos pêlos até à barriga lisa, inerte e silenciosa diante das carícias na tua pele, com os meus dedos frios como pilastras de mármores sustentando todo o peso da carne, em total contraste com os mamilos rijos e urgentes, sensíveis ao toque, mesmo o teu. Os grandes lábios, antes abertos, contraem-se como numa reza entoada baixinho, olhos cerrados, queixo levantado, e num sussurro entre um gemido e outro, quase inaudível, um nome.

Um só, o mesmo de sempre. O meu.

Uma brisa suave anunciou o fim do verão, o sol afundou-se na linha do horizonte, mas a escuridão ainda não caiu totalmente, o tom pastel da luz ainda deixa adivinhar pormenores da paisagem. Demorei a encontrar-te no lugar da inocência, adorno desabitado em andamento lento. A pátina do tempo esverdeou as estátuas outrora imponentes, agora vandalizadas, com o rio a correr insensível, indiferente ao colorido das flores silvestres nas margens e no céu que só os pintores sabem representar. Morávamos em margens diferentes do rio, horas de ida e volta, com tempo para ver o reflexo das nossas vidas no vidro do comboio, espécie de ousadia ou cegueira, aposta decisiva sem cálculos, como arriscando andar por casa de noite tropeçando nos móveis e a derramar lembranças e outras coisas. Quando entrámos no quarto tomaste logo conta de tudo, levantaste o vestido e mostraste-me de que matéria era feito o amor enquanto o tempo encurva.

Nesse dia, o marceneiro veio rectificar as portas que estavam empenadas e acabou a falar sobre a precariedade da vida, do emprego, do amor, e da necessidade de comprar mobiliário IKEA, porque como as relações são imprevisíveis, o que é descartável e barato não acumula prejuízo e de preferência não o esfacelar para poder devolver nos primeiros trinta dias.

Quando demos por isso já não sabíamos em que zona do silêncio tínhamos deixado de assentar tijolos à nossa vida, lembro-me que era domingo, a televisão com o som alto e do vento que queimava a nossa cara, apesar da verdade subterrânea com que desejava construir um futuro infinito onde o teu sorriso iluminasse os subúrbios do dia.

A vida transformou-se numa obsessão entre paixões e dor a correr no sangue, rio de cicatrizes com a felicidade a desvanecer-se de noite, no lento ronronar do frigorífico estafado pelos 20 anos de uso permanente, atacado de ferrugem nos cantos e a lâmpada interior a tremelicar por mau contacto, a que era preciso dar umas cacetadas, com bolor entranhado nos cantos e meia cebola cortada, colocada no compartimento dos ovos para absorver os maus odores.

A luz entrou no quarto sem pedir licença e inundou-me os olhos enquanto esperava, numa dolência, pelo derramar das horas.

O vazio encontra sempre as mãos do dono.