Justino era coveiro, trabalho herdado dos homens da família. A última pessoa que enterrou foi o seu pai.
Não tinham ninguém. Viviam um para o outro. Quando um morreu, morreram os dois. Como se a vida fosse só uma. Assim, Justino, nesse dia, despediu-se do pai, regou as flores com as suas lágrimas, despediu-se da pá, do ofício, do cemitério.
Foi para casa sozinho e, no silêncio da saudade, deixou-se estar.
No seu quintal havia um poço, um poço onde recolhia a água do dia a dia.
Içou o balde com as suas mãos duras e ásperas. No reflexo da água o seu reflexo, como uma fotografia antiga do pai. Sorriu quando o reconheceu.
Pensou que as almas de quem parte estariam escondidas no fundo daquele poço e assim colocou essa água numa bacia de barro junto ao pequeno altar da família. Essa água do pai, guardaria.
O pai de Justino assobiava muito. Assobiava para não ser confundido com os mortos enquanto cavava as suas covas. Mestria passada para Justino que, assim, se tornou um mestre do assobiar.
Justino e pai eram cópia um do outro. Quanto mais Justino envelhecia mais parecidos se ficavam. Eram por vezes confundidos pelas gentes da aldeia próxima.
Na aldeia chamavam-nos os assobiadores da morte. Sempre que se ouviam os seus assobios alguém tinha morrido. Desta forma as relações com os comuns mortais afastavam-se a boatos e mitos que pai era uma aberração demoníaca e filho seguia-lhe os passos; que eram os dois a mesma pessoa, que de noite era um velho e de dia um rapaz. As histórias iam crescendo e assim se isolavam cada vez mais.
Viviam afastados da multidão, pessoas também não lhes diziam nada. Preferiam a sua terra e o conforto da sua subsistência, a estar perto dessas gentes de mal dizer.
Tudo o que plantavam era para sua sobrevivência, viviam com pouco mas mais do que suficiente: das palmeiras extraíam o azeite de palma, das folhas já secas protegiam o seu terreno; do poço retiravam a água - o pai sempre se mostrou muito crente, falava naquele poço como quem fala de Deus, que dali se extrai a fonte da vida, a água de beber, a água para comer; das galinhas os ovos, dos galos cansados da vida a carne; da terra a batata, a mandioca, o milho, as couves, a cana de açúcar.
Todas as manhãs, Justino, ia ao poço – onde retirara o reflexo da saudade, do seu mestre, do seu pai – lembrava as palavras “dali, no escuro cego da profundidade deste poço, a fonte da vida, meu filho”. Içava o balde que assobiava na ferrugem das roldanas e da corda gasta; o assobio do seu pai, um assobio desvitalizado mas presente.
Justino aprendeu cedo que as almas circundam o mundo e não morrem. São pertencentes de um corpo até a matéria se perder e, depois, soltam-se e se transformam em vento e chuva e nevoeiro, em cacimba, em pó, em instinto.
Na sua solidão aprendeu a comunicar-se com estas almas, aprendia das suas vidas as suas histórias. Abandonando de vez a raça humana que se perdia a cada invenção; que se destruía a cada teoria; que se mutilava com a tecnologia do amanhã.
De duas árvores que caíram com os ventos, Justino por várias luas, esculpiu duas estátuas: esguias, altas, maciças. Simbolizavam a resistência e a nobreza trazendo proteção e força dos seus ancestrais. Os troncos, nobres, ébano de cor pura, profundamente negro: um portal directo para espiritualidade.
Ao fim de um tempo, com as estátuas colocadas em frente à sua palhota, chegavam peregrinos, moribundos, viajantes, gentes de outras terras. Todos eles se tinham perdido na essência e procuravam a sabedoria. As estátuas não só comunicavam com as almas como também chamavam vivos descentrados e perdidos da sua essência humana.
Justino começou por chutar as primeiras pessoas, fazendo sons estranhos, movimentos bruscos e contorcidos para assustá-las, fundamentando os mitos criados pela comunidade. Elas fugiam, espalhando esta ideia de que Justino era um excêntrico, perigoso, que era um feiticeiro que fizera um pacto com o diabo. Que ele próprio se transformava em diabo. As duas estátuas, uma entrada para as trevas.
Conseguiu o que queria; Justino vivia em paz na sua solidão, no seu abrigo, assobiando as memórias do pai, a saudade, a sua história - longe dessas invenções ocidentais que consumiam o mundo.
Justino envelheceu, as forças escasseiam. Mantinha-se numa palhota feita de pau e folha de palmeira coberto com teto de zinco. Fumava muito. A casa estava entregue à natureza, grandes eras cobriam as paredes e entravam no interior pelas janelas partidas. Justino fizera da sua residência a sua palhota. Sentia-se mais perto das suas almas que eram muitas. As guerras no Oriente, a fome do ouro negro, o capitalismo, a fome, a pobreza. Sentia o mundo perder-se e assim no recobro das suas estátuas se manteve.
Chutando quem aparecesse; até que um dia, alguém apareceu seguindo o assobio que se ouvia a quilómetros de distância.