Num de seus excelentes textos divulgados em sua página do Facebook, Alcides Villaça menciona um trecho de Reflexões sobre o exílio (1984), de Edward Said1. No excerto, o orientalista cita Hugo de Saint Victor, um monge da Saxónia do século XII, quando diz:
O homem que acha doce seu torrão natal ainda é um iniciante fraco; aquele para quem todo solo é sua terra natal já é forte; mas perfeito é aquele para quem o mundo inteiro é uma terra estrangeira. A alma frágil fixou seu amor em um ponto do mundo; o homem forte estendeu seu amor para todos os lugares; o homem perfeito extinguiu isso.
(Hugo de Saint Victor)
Talvez o mundo inteiro seja uma terra estrangeira. E talvez tal fato se evidencie em alguns momentos, como no isolamento, durante a pandemia, em que não sabíamos se haveria mundo para onde voltar. Também nos cenários de guerra, de morte e de fome, tão tristes e absurdos, como temos visto recentemente e como acontecem desde sempre. Ainda na falta de moradia e de acolhimento. No fechamento de fronteiras. Ou nos movimentos de quem busca outros lugares para morar – outros países, regiões, cidades, casas. O não pertencimento é tema contemporâneo, num mundo em ebulição, marcado por tristes histórias de refugiados e exilados. No entanto, além disso, talvez a condição humana, ela mesma, seja marcada pela sensação de exílio, seguida da busca de alguma Ítaca possível, busca que nos move, como lembra Kaváfis.
[...] Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
e fundeares na ilha velho enfim,
rico de quanto ganhaste no caminho,
sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
[...](Konstantinos Kaváfis, tradução de José Paulo Paes)
Assim, há também as pequenas migrações e partidas metafóricas da vida cotidiana, mesmo quando ela não é marcada por eventos extremos. Nesse sentido, sempre partimos.
Quando organizei meu segundo livro de poemas, Todo poema é de amor (2019)2, em que uma fictícia Penélope, no lugar de Ulisses, fazia ela mesma seu próprio percurso amoroso e de viajante, mostrei uma protagonista que partia, percorrendo paisagens e vivenciando momentos. No entanto, o livro não narra a chegada. Talvez a vida possa se dar mesmo na viagem.
Exílio
reconstruo a casa ajusto os olhos
ouço falas gritos de pássaros
recolho-me ao interior
enquanto leio sobre dança amor
escuto Mette Henriette
e evito escrever poemas(Cristiane Rodrigues de Souza)
Parte-se todo dia. E as maneiras de se voltar à sensação de um estado de pertencimento são muitas. Uma delas, muito bonita, é a amizade. Sorrisos entre amigos, planos em comum, ao se organizar um livro. Café apressado, falas rápidas, ideias de congressos, abraços. Uma fala comovente sobre meu livro de poemas, a disposição para acolher. Um longo café da tarde na casa que possui paredes tatuadas, em que se reúnem três amigas em exílio e alguém da cidade: café colombiano, doces de Minas, pão de queijo, dadinhos de tapioca. E há um lugar.
Outra forma de regresso é o amor. Não à toa, Mar Becker3 diz, em um de seus poemas:
tornar o amor uma casa
erguê-lo como se ergue um lugar, abrigar-se nele
entrar dentro do amor
refugiar-se em suas trincheiras como
os que vêm feridos de morte
os que de súbito entendem que viver é breve -
mas amar é longo
torná-lo tua mão que alcança a minha
a volta a um primeiro ato
de misericórdia
o sangue marcando as ombreiras de nossas portas
tornar o amor um esconderijo de infância
uma fresta na madeira
uma luz tênue
uma ave
tornar o amor uma casa; torná-lo
uma asa
que seja casa, o amor
ainda que amar desabrigue(Mar Becker)
Amar é lançar-se em viagem. Amor é desabrigo, risco e conhecimento do corpo e da fala do outro, estrangeiro. Mas amar é também de repente parar a caminhada, colocar no solo mochila e malas. Ver se há algum rio por perto, conferir sombra, árvores frutíferas. Ficar. E então escrever alguns poemas:
mientras llove
tú me dás
la luz del Sol
sobre el hórreo
las nubes de La Peneda
y tu voz y tu mirada
desde lejos
cosas que pongo
con cuidado
en una caja pequeñita
donde guardo
también escondido
mi corazón
tus palabras
me invadem o corpo
como pájaros
então me descubro
eu inteira dispersa
ar feito de mar
piscina arena
y rocaslugar
vivo entre tua barba
e tua clavícula.(Cristiane Rodrigues de Souza)
Referências
1 Said, Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003
2 Souza, Cristiane Rodrigues de. Todo poema é de amor. São Paulo: Laranja original, 2019.
3 Becker, Mar. Sal. São Paulo: Autores e ideias, Assírio & Alvim, 2022.