Um passo só e você não está mais no mesmo lugar, já disse o poeta. Imagine dois caras explorando uma das maiores cidades do mundo, a pé!? Pois é disso que fala esta história.
Explorando o desconhecido
Quando a cidade de São Paulo estava para completar 450 anos. Antes do GPS ser popular e mapas em papel eram coisa muito útil, dois manos fizeram uma viagem diferente. Eles iam atravessar não de carro, não de helicóptero, não de bicicleta, nem a cavalo, mas do jeito mais antigo... a pé, de um lado ao outro da metrópole. Uma aventura tão básica como essa só podia dar no que deu, em uma boa história. Hora com ares cômicos em outras tocantes, essa caminhada foi narrada pelo escritor Reinaldo Moraes e foto-documentada pelo fotógrafo Roberto Lisnker.
Nasce a ideia
Nascido o sonho no espírito de Roberto, um trekker e montanhista veterano, que após chegar de avião ao Aeroporto de Congonhas enquanto olhava pela janela o emaranhado da cidade lá embaixo e pensava, lhe veio a pergunta:
E como seria esta cidade lá embaixo? Na terra o que se veria, ao atravessar e explorar os seus segredos?
Ele reparou que já tinha rodado pelo mundo, mas não conhecia nem sua cidade de nascença, foi assim, dessa curiosidade que ainda em meados de 2003 fez a proposta para o então editor sênior da National Geographic Brasil, Ronaldo Ribeiro, que aceitou a simples, mas inusitada ideia. Era tão óbvio que chegava a ser incrível.
Com a revista topando, Linsker convidou um amigo de longa data e com experiência em jornadas, Marcelo Macca, mas de última hora ele não pode ir. Foi assim que Reinaldo Moraes convidado por o então redator-chefe Matthew Shirts, entrou meio que de gaiato na história já às vésperas da saída.
O resultado foi, que dois desconhecidos entre si, foram conhecer juntos uma cidade que era sua e de outros milhões. O fotógrafo era um aventureiro de larga experiência em outras paragens, explorador veterano, mas de locais verdes por assim dizer. O outro um escritor acostumado a descrever o comportamento humano, suas nuances, particularidades. Um registrava com seus olhos e a lente da câmera, o colega na memória e no papel, mas ambos observavam envoltos e fascinados a beleza caótica dessa capital.
Simplesmente andando, sem pretensões de ser explorador, mas já sendo. Essa peregrinação se tornaria um livro contando a aventura, tendo como mote a celebração do aniversário da cidade, e daria origem as histórias de Estrangeiros em casa - Uma caminhada pela selva urbana de São Paulo1. Assim puderam ver uma beleza selvagem, feita de concreto, ferro e vidas.
A jornada
Aconteceu em São Paulo, mas poderia ser em qualquer cidade grande, no Brasil ou em qualquer lugar do mundo, a experiência de andar para conhecer.
A premissa era simples. Caminhar de uma ponta a outra e ir conversando com as pessoas que estavam pelo caminho. Isso fez com que conhecessem, mesmo que por apenas momentos, pessoas de todos os tipos, e fez com que suas histórias ficassem registradas, trazendo um panorama das vidas nessa megalópole mundial. São Paulo é a 8° cidade mais populosa do planeta. Também é a 10° aglomeração urbana do mundo, isso porque é conurbada (sem fronteiras claras com as vizinhas, formando assim um bloco urbano) praticamente se tornando uma só entidade com as cidades irmãs ao redor, Osasco, São Bernardo, São Caetano, Diadema, Taboão da Serra, Cotia, Guarulhos, Barueri, Caieiras, Suzano, Mauá, Itapecerica e outras, uma massa chamada região metropolitana ou Grande São Paulo, o que denota essa identidade compartilhada entre seus mais de 20 milhões de habitantes.
Sim, essa caminhada e seus percalços, a coisa toda pareceria brincadeira de criança para índios ou bandeirantes que já faziam isso na época que o local ainda era uma mata fechada e de topografia selvagem de morros, com algumas clareiras aqui e ali chamadas de aldeias/vilas. Contudo, se para os dois havia facilidades do mundo moderno, como um trajeto mais plano, locais onde comer/dormir e condução em eventualidades, por outro lado havia as agruras do mundo moderno e urbano; calçadas nada gentis, caminhos tortuosos, fumaça sufocante, o barulho intermitente martelando nas avenidas, a sujeira e os carros/motos/caminhões/tratores rasgando vorazes por todo canto; entre outras coisas que só a "civilização" pode nos dar.
Foram em torno de 90 quilômetros de caminhada. Indo de uma mata a outra, da Serra do Mar à Serra da Cantareira, áreas praticamente rurais nos dois extremos da cidade, e no caminho passando por alguns dos trechos mais urbanizados do mundo. Começando de Marsilac, extremo sul perto do litoral, e passando por bairros como Parelheiros, Grajaú, Cidade Dutra, Interlagos, (suas represas e autódromo), Santo Amaro, Moema, Congonhas, Liberdade, Sé, Luz, Bom Retiro, Santana, Mandaqui, Tucuruvi, Jardim Tremembé (já nas margens da serra da Cantareira), Cachoeira, e indo até os limites com a cidade de Mairiporã. A meta era simples, conhecer a cidade ao vivo, a pé, como dois passantes casuais, de tão simples (e incomum nos dias de hoje) a andada era uma ideia genial.
Turistas em sua própria cidade
Pelo caminho a vida, pulsante, pungente, impressionante. Nesse ritmo lento e contemplativo que só o andar nos dá, teriam tempo para ver as coisas de perto, com calma. Assim conversando com as pessoas, fotografando, iam aparecendo pelo trajeto os moradores, ambulantes, cabelereiros, vendedores, mecânicos, lavradores, indígenas, operários de obras de rua, prostitutas, policiais, aposentados, desempregados, estudantes, cuidadores, mas gente, gente antes de mais nada.
Se misturando ao panorama, caminhando neste imenso labirinto místico. Eram dois bichos grilo em meio a imensa fauna humana em seus diferentes aspectos.
Sim, sim, também viram muitos animais que não o homem; macacos, saruês, urubus, garças, vacas, cavalos, porcos, pequenos pássaros de todo tipo, e claro cachorros, muitos cachorros. Comprovando que a cidade é uma ilusão criada que permeia a natureza, essa sim onipresente.
Em momentos na chuva ou garoa, em outros no vento ou no calor escaldante abafado pelo asfalto, na poeira ou sentindo o cheiro da terra molhada, tossindo ou apreciando a brisa, olhando o céu ou cercados pelos prédios.
Enquanto Linsker ia escrevendo com a luz as paisagens ora insólitas ora familiares. Reinaldo ia recolhendo impressões dos caminhos e da rica vida daqueles com quem iam cruzando. Com pitadas de humor e um tom tragicômico o livro nos leva a refletir sobre o que é viver.
Uma viagem idílica, algo onírica, realidade que parece fantasia quando contada, com jeito de presente, mas nascida já nostálgica como prevendo que esse seria um registro histórico. Um passeio alegre e melancólico. Você deve ter percebido, o título do livro faz uma brincadeira, os dois viajantes são paulistanos, nascidos e criados ali, porém nesta trip iam descobrir uma cidade até então desconhecida para os dois, conversar com estranhos que logo se tornavam familiares, acessar lugares fora da sua zona conhecida, alargar seu círculo social. Eram dois estranhos perdidos na cidade. E lendo parece que você está andando com eles.
Ilustrado com muitas fotografias coloridas, em formato quadrado tem um texto casual e divertido, por isso a leitura é leve e passa voando. No entanto, por trás dessa aparente leveza há um conteúdo riquíssimo. Sobre nossa sociedade atual; suas relações, as origens, motivações, diferenças e anseios. Enfim, um retrato majestoso da vida, da cidade, seus habitantes e os muitos elementos que fazem o grande mundo girar. Leitura obrigatória para paulistanos natos ou de adoção. E, claro, para cidadãos do mundo.
Notas
1 Linsker, Roberto; Moraes, Reinaldo. Estrangeiros em casa: uma caminhada pela selva urbana de São Paulo. Editora: National Geographic Brasil. Formato: fotolivro, 122 páginas, 2004.