— Acordou agora, Tiago? — indaga o avô, da poltrona, ao ver o neto passar arrastando os pés no corredor.
— Oi, Vô — responde o neto, com a cara amarrotada, sentando-se próximo.
— São quase duas da tarde.
— Pois é. Fui dormir de madrugada. Está fazendo o que? Não me diga que vai ler este “tijolo”. Parece uma bíblia...
— Sim, já comecei a ler. É um livro muito bom.
— Não sei onde arranja paciência para ficar tanto tempo nas leituras. Não tem o filme deste livro? Muito mais rápido para saber a história.
— Eu gosto muito de filmes também. Mas este livro, por exemplo, até agora vendeu mais de 20 milhões de exemplares, uma marca impressionante. Alguma vez você primeiro leu o livro e depois viu o filme?
— Não gosto de perder tempo. Vou direto no filme.
— Eu agora não vejo mais filme de livros que li. Todas as vezes que fiz isso me decepcionei com o filme.
— É que também tem filme ruim, claro. Mas nós estamos no século XXI e não dá para ficar horas lendo um livro. Agora é tudo rápido: no Twiter, por exemplo, as mensagens têm que ser pequenas. Vídeo de mais de 2 minutos ninguém assiste. Texto longo no Facebook a gente passa direto, sem ler. No Instagram é tudo instantâneo. O tempo é ouro, Vô. Enquanto você lê este livro eu terei visto dezenas de filmes, muitos vídeos, stories, fotos e lives: uma variedade enriquecedora. Enquanto você conhece uma história eu conhecerei dezenas!
— Sei. Talvez seja uma questão de quantidade ou qualidade, superfície ou profundidade. Mas foi isso que ficou fazendo ontem até tarde?
— Ontem maratonei uma série muito boa. Assisti uma temporada inteira: a última! Fui de dez da noite às 5 da manhã.
— Sete horas direto na televisão! Eu soube que tem uma série muito famosa sobre zumbis, com umas dez temporadas e cerca de 16 episódios, de quase uma hora cada. É verdade? Quase 160 episódios!
— Tem sim. Eu já vi. É excelente! Estou aguardando a próxima temporada.
— Meu Deus! Neste tempo eu teria lido mais de uma dúzia de livros. Mas você não disse que agora é tudo rápido, ninguém tem tempo para perder com coisas longas, é ritmo de século XXI?
— Ah, mas série é diferente, Vô — respondeu Tiago, embaraçado.
— Por que é diferente?
— É mais emocionante. Prende a gente. Experimenta deixar o livro e ver uma série: vai gostar.
— Hum... Se prender a atenção e for emocionante não precisa ser rápido, estilo século XXI?
— É...
— Então se for um bom livro que também prenda a atenção e seja emocionante, não tem problema ser grosso como este, certo?
— Sei lá.
— Ler é principalmente uma questão de gosto. E gosto vem com o hábito. Se você desenvolver o hábito de ler, passa a gostar. Só tem que ler os livros certos, pois como os filmes, há muita coisa ruim por aí. Senão é como você comer uma lasanha ruim e concluir que não gosta de lasanha.
— Vô, o caso é o seguinte: eu não tenho paciência para ficar sentado horas diante da monotonia de um livro, vendo apenas palavras impressas, quando posso desfrutar de imagens e sons, muito mais interessantes e dinâmicos.
— Compreendo. Então você acha que são atividades diferentes, mas que uma pode substituir a outra? O vídeo mata o texto?
— Pode substituir sim. É o que faço e com vantagens. Prefiro filmes e séries. É muito mais interessante e agradável.
— Então este é o ponto! Você deveria continuar com bons filmes e séries, vendo as redes sociais, mas também deveria ler, pois não são atividades incompatíveis, nem substituíveis. Cada uma tem suas qualidades próprias.
— Sei... — desacreditou o neto.
— A grande diferença é que na leitura você é ativo e nos filmes, passivo.
— Como assim?
— Veja o início deste livro. Leia as duas primeiras frases — disse o avô entregando o livro a Tiago.
— “Os garotos chegaram cedo para o enforcamento. Ainda estava escuro quando os primeiros três ou quatro esgueiraram-se para fora do galpão, silenciosos como gatos com suas botas de feltro.” — leu o neto, em voz alta.
— Este pequeno trecho formou várias imagens na sua mente, certo? Você visualizou os garotos, o galpão, o movimento deles esgueirando-se para fora, percebeu o silêncio dos gatos e provavelmente teve a sua curiosidade despertada para o enforcamento.
— Isso mesmo.
— Eu que já havia lido e agora ouvi o mesmo trecho tenho na minha mente outros garotos, esgueirando-se de forma diferente, outro galpão e até outros gatos, com outras botas. Talvez você tenha ficado com três garotos e eu com quatro e até o número de gatos deve ser outro. Concorda?
— Sim. Claro.
— Pois se fosse um filme não haveria esta diferença porque estaríamos assistindo ao que realizou o diretor e não o que a nossa imaginação produziu. No livro é diferente. De certa forma também somos autores, porque usamos a habilidade da nossa mente construindo a história na nossa imaginação. Duas pessoas nunca leem o mesmo livro. A história é única para cada um, pois a imaginação é própria de cada mente. E isso é de uma riqueza inestimável: explica porque após horas lendo um livro a sensação é agradável, enquanto muitas horas de televisão nos deixam letárgicos e sem energia.
— Neste aspecto, sim... — disse Tiago interessado.
— Nós precisamos estimular muito a nossa imaginação, pois é de lá que vem a criatividade. E esta talvez seja a qualidade mais valorizada no tempo ao qual você se referiu: o século XXI. A atividade da leitura exercita a sua mente de modo único, insubstituível.
— OK, Vô. Acho que tem certa razão. Agora vou comer alguma coisa — disse Tiago, já se levantando.
— Só uma última coisa: pesquise na internet sobre as pessoas que você admira pela inteligência e cultura, pessoas brilhantes, preparadas e que se destacam em suas áreas. Tem sempre uma biblioteca por trás de cada uma.
— Valeu! Continue sua aeróbica mental aí. Fui!
O avô então continuou sua leitura. Mais tarde, separou um bom livro e colocou-o na mesa de cabeceira do Tiago.