Era Domingo de Páscoa, agora que os sogros tinham morrido, o almoço limitava-se a receber o Pedro, um amigo da sogra, que adorava falar sobre ciência e astronomia, preenchendo a tarde com teorias e fórmulas, algoritmos e pequenas curiosidades. Quando lhe começava a dar comichão nas costas do tempo passado na mesma posição na cadeira, ia sempre fumar um cigarro para a varanda. Da última vez ouviu a vizinha de baixo a vir-se, ao almoço e no mesmo piso, mas no lado oposto, os talheres a raspar na loiça provavelmente a ser limpa dos restos para o caixote do lixo.
Pela sua parte só esperava que o Pedro se fosse embora para tomar umas notas para o seu próximo livro. Sempre gostara de escrever, embora agora andasse parado por conta de um bloqueio. Em pequeno, na escola primária, tomara o gosto às letras muito por conta da sua animosidade com a aritmética empenhando-se assim, nas histórias que enchia de personagens, dezenas delas, caricatas umas, superficiais outras, medianas a maior parte delas. No final, como já lhe faltava tempo e imaginação para as desenvolver, reunia-as numa excursão à Serra da Estrela, onde só se safava o motorista, protagonista humilde e convicto do dever cumprido, depois de um acidente rodoviário excessivamente gráfico.
Deixava-se arrastar pelas memórias com inusitada frequência, para longe, da infância no bairro de Campolide ao deserto do Shara, onde estivera com a mulher e o filho após uma longa viagem de carro desde Lisboa, de Portofino, onde se roía de inveja e frustração a ver os iates fundeados na baía com gente a apanhar sol nos decks beberricando champanhe ou coisa que o valha, até São Petersburgo e a imponência dos seus monumentos ao mais humilde recanto ou situação.
Arrastava tudo, termo que preferia a procrastinar.
Arrastava, por exemplo, as cinzas do pai, falecido há dois anos, por não chegar a acordo com o sítio ou com a família para as depositar, depois viera a pandemia e agora, com o novo emprego não estava disposto a perder dias para atirar as cinzas ao vento nas matas lá da terra e, assim, o cilindro com as cinzas continuava num canto da sala, até acabar por fazer de batente quando os homens das obras o tombaram para que as portas sem ferragens, acabadas de envernizar, não tocassem na parede.
Este verão teria que tratar do assunto.
O Pedro saiu e ele aproveitou para o acompanhar até à rua e fumar mais um cigarro, uma vez que não fumava à frente do filho, continuamente a esconder cinzeiros e a arrancar-lhe os cigarros da mão. Foi até ao jardim no final da rua, sentado num banco de ferro, um velho cabisbaixo, à espera dos dias ou das horas que o levassem para algum lugar onde não tivesse que se angustiar com o jantar ou a falta dele, nem com as dores que nenhum medicamento ou bengala aliviavam.
Não sabia porque pensava nisso agora, certo é que influenciado pelas imagens do homem e pelo casamento sem história do Aníbal, a gastar sábados no polimento do carro, enquanto a mulher, com o seu corpo anguloso, mal talhado nos quadris já desprovidos de atractivos, mais o seu ar fechado sem simpatias nem sorrisos, habituada ao percurso casa-trabalho esmagando os dias sem outro interesse que não o cumprimento de um calendário invisível e monótono onde só existia emprego, novela e cama, sem desejo nem a mais viva sensualidade a cair com atrevimento no vazio, incómoda existência dos vulneráveis, a apontar-lhe a insegurança e falta de decisão no mais pequeno pormenor, foi mais uma acha na sua cada vez maior falta de interesse, acabando a falar do tempo e outras trivialidades, ela deixara de prender o cabelo, que a tornava mais alegre e acentuara o desleixo quando, ao final do dia, chinelava com um par de havaianas comprado numa loja de chinês, encerrada na menopausa e nas discussões constantes, ratificando o óbito como casal.
Ele, por seu lado, teimava em aceitar todas as vicissitudes e percalços da vida. Sem estofo para perceber se o destino seria uma força a que se submetia ou uma graça divina que partilhava, perdia-se no tempo que demorava a decidir entre liberdade e vontade, ter acção ou o poder de agir acabando por não fornecer alimento ou combustível a nenhuma delas.
Tal hesitação entre os conceitos, alimentar ou fornecer combustível à liberdade ou à vontade, sendo abstractas, não comiam como os seres vivos nem engrenavam motores como as máquinas embora ambas funcionassem a várias rotações, levava a que se deixasse de questões filosóficas e começasse a agir por impulso.
Foi assim que, na segunda-feira seguinte decidiu retornar à escrita, para resgatar memórias e fazer, nos poucos anos de vida que ainda tinha pela frente, o relatório de uma existência falhada, de dramática geometria, tudo embrulhado por uma estranha luz de submissão à precariedade do destino, um destino social, sobrelotado, vivido e muitas vezes adiado, numa comunidade à deriva, com uma simplicidade escondida no quotidiano de um povo, aparentemente, com excesso de história.