Sinto que me regularam a vontade, uma tontura plural que me faz esquecer de pequenas coisas com maior frequência, nos intervalos tento enumerar as vantagens que a urbanidade me trouxe. Acho que foi a tomada de consciência do rolo compressor em que o tempo ou a sua passagem se tornou. Imagino o mundo sem a noção de tempo e espaço e acabo, em sonhos, como escravo fustigado na Roma antiga ou servo da gleba na idade média. Olhando para o que sou e o que faço não vejo a diferença numa continuidade de sinais e fragilidade que vou deixando por onde passo.
Ao longe passa uma mota em aceleração de alta cilindrada, nota-se pelo ruído. Os ruídos perturbam-me, coisas fora do lugar e marcas de pó nos móveis também, assim como azulejos nas paredes sem simetria. Perco tempo nisto, e acabo a desembocar no vazio, na memória, no tempo e no desejo, interrogando-me sobre que raio de história poderia sair daqui enquanto o tempo escorre para as páginas do meu bloco.
Nesta vida oca, a simples avaria de um electrodoméstico torna-se um problema de gravidade acentuada. A avaria dos objectos é um sinal dos tempos, um sinal que interfere com a minha produtividade porque me desvia a atenção, vai ser difícil encontrar um técnico para o arranjo ou acomodar a agenda para comprar um novo aparelho numa era que produz ordens e obediências e restringe o tempo. A máquina da roupa avariou, ou por outra, perdeu funcionalidade e eu olho para a roupa alinhada nas cadeiras da sala como imagens infinitas onde posso ir sacar ideias.
Lá fora, houve um acidente e ouço a inconsistência dos relatos, mandamentos de filósofos de rua com dentes mal tratados e os nervos estratificados pelo quotidiano cinzento, uma aniquilação de massas que não deixa rasto nem sinais em museus, em temor ao Pai Nosso que nos pretende guiar pelos caminhos do bem e transferir os sinais aos outros para que tudo siga ordeiramente.
Foi o que aconteceu ao meu vizinho, numa tarde de petiscos em Setúbal, bolsou o Gin e os calamares fritos em óleo tóxico, uma afronta ao fígado que não se deixou ficar e ele que previa uma noite de folia com uma estudante de Erasmus, imagem falsificada de desejos, a tornar-se onanista das dores, na confusão instalada no seu cérebro e no lamaçal da septicemia sem remédio.
Deixou viúva e dois órfãos.
Nesta busca incessante de ideias, nada me protege dos lugares de perspectiva abaixo do nível do mar. Escrevo o que o vazio me dita, incógnita longínqua de uma massa sem expressão, saio desta letargia, do léxico apropriado à inconsistência química e involuntária que procuro alimentar.
As ideias teimam em não aparecer na história que estou a desenvolver sobre vulnerabilidade num mundo em perda e sem moralidade, uma ruína da forma e da vontade imbecilizada dentro de paredes e janelas, numa arquitectura gizada para a acumulação de isolamento, ainda assim, consegui dar forma a uma personagem que acabou de chegar:
Sou uma pessoa sem história, sem amizades, sem grandes deslumbramentos, pelo menos até ao dia em que me reformei. Nessa altura decidi levantar todo o dinheiro do banco e ir viajar pela europa fora ou dentro, depende da perspectiva. Começava pelo norte de Portugal, sul de França e ia até onde o dinheiro esticasse.
Atravessava a Espanha e por aí fora. Fui roubada, levaram-me a mochila com todo o dinheiro e documentos. Nada mais me prendia. Meti-me no autocarro. Se calhar foi burrice, deslumbramento, sei lá, acho que não cresci tudo o que devia, não foi por falta de óleo de fígado de bacalhau, com que a minha mãe me empanturrava às colheradas, também não foi pela leitura que consumia diariamente aventuras e romances de cordel, mas faltou qualquer coisa no meu desenvolvimento, também nunca batalhei muito por isso.
O costume ganhou raízes e quando dei por isso já era adulta. Foi logo no segundo dia, depois da viagem e da chegada ao Porto decidi ir ver a paisagem, levava todo o meu dinheiro na mala que não confiava no hotel e quando ia pelo passeio um rapaz passou de trotinete e puxou-ma, caí, ainda gritei e chorei, mas ele tinha desaparecido.
Houve quem lamentasse, quem criticasse a falta de polícia, o isto estar cada vez pior desde que escancararam as portas, a burrice por ter levado todo o meu dinheiro. Toda a minha vida tinha acabado de ir embora dentro daquela mala. Deixei de os ouvir quando vi a imensidão de beleza azul à minha frente, na Foz, andei uns metros e sentei-me no banco de madeira, passado algum tempo entrei na água e nadei, até o mar e eu nos tornarmos numa coisa só.
E assim encontrei o fio condutor para a narrativa, com personagens que gostam de jogar nos limites, uma ideia de deslumbramento em contraste com a realidade cínica do quotidiano, quando não nos conseguimos retirar a tempo do caos nesse novo léxico, em estrutura circular, que nos projecta para a falta de resistência.