Sid, diminutivo de Sidónio, estava no Cais do Sodré às 5h da manhã para o primeiro barco que saía para Cacilhas dali a meia hora. Não havia nenhum café aberto, e o primeiro que abria era só às 6h.

Pelas ruas cirandavam os bêbados saídos dos bares, das discotecas ou dos botellóns; cobriam a cara e semicerravam os olhos como vampiros que — na iminência de serem obliterados — fugiam à fraca luminosidade da manhã.

Entrou no terminal fluvial e dirigiu-se à porta três que dizia Cacilhas, lá estava o “São Jorge” atracado. Na sala de embarque, encontrava-se um pequeno grupo de pessoas; sentadas ou de pé, com os olhos postos no telemóvel ou num jornal, à espera que as portas se abrissem. Sid não necessitava de aguardar, cumprimentou o segurança no canal de saída e este, depois de confirmar o cartão de empregado, deixou-o passar abrindo uma das cancelas.

Na embarcação falou aos colegas com um aceno rápido. Desceu às acomodações e fardou-se; em pouco tempo estava no convés novamente. Faltava pouco para abrirem as grades da sala de embarque. Daí a nada o espaço enchia-se de passageiros que: ou iam para casa ou iam trabalhar ou iam visitar alguém na outra margem.

No pequeno snack-bar, situado no centro do convés, Margarida servia cafés ao piloto, copiloto e a outros operários que falavam entre si. O ajudante alinhava as chávenas e os pires e os açucares para os passageiros ávidos da mesma bebida. Não iam parar até por volta das 10h. Sid apoiou-se ao balcão.

– Estás cá cedo! – disse Margarida.
– Estou de manhã este mês.
– Eu também. Vamo-nos ver mais vezes. Almoçamos juntos, em Cacilhas?
– Pode ser. Mas agora preciso mesmo de um café.

A máquina Fiamma bufava vapor das lanças arqueadas e dos doseadores que não ficavam mais do que dois segundos no mesmo sítio: eram retirados, sacudidos, enchidos, prensados e engatados na máquina outra vez. Uma pequena variedade de bolos apresentava-se na vitrina e em poucas horas eram todos vendidos.

Faltavam quinze minutos. As portas da sala de embarque abriram-se e os passageiros caminharam pela rampa e começaram a distribuir-se pela embarcação: sentavam-se na vante, na ré, junto as janelas a bombordo e a estibordo. Procuravam o lugar com a melhor vista para o mar ou debruçavam-se nos seus assuntos durante a viagem; outros agrupavam-se junto ao snack bar aguardando o elixir estimulante.

A maior parte eram senhoras da limpeza ou trabalhadores da construção civil. Sid, junto a porta, recolheu os cordames que imobilizavam a embarcação ao cais, enrolando-os coordenadamente. A plataforma basculante subiu e ele, então, fechou a cancela e posteriormente a porta.

O barco começou a vibrar com o funcionamento dos propulsores laterais a afastarem-no do cais e de seguida as hélices principais faziam-no vibrar ainda mais. O Cais do Sodré começava a ficar pequeno, mais pequeno, à medida que se movimentava no mar em direção a Cacilhas. Já se via o Terreiro do Paço e para os lados de Belém, muito diminuto, o Padrão dos Descobrimentos. O embalo do mar do Tejo sobrepunha-se a vibração dos motores.

Sid fizera este caminho inúmeras vezes. Já trabalhara noutras embarcações da mesma frota e fizera todos os percursos em diferentes horários — fruto de estar á uns bons anos na empresa —, já tinha visto o Tejo de inúmeras perspetivas e nunca se fartava, praceialhe sempre bonito. Lembrava-se ainda dos velhinhos barcos laranjas: cacilhei-ros e ferries. Andara neles em miúdo e na altura nunca sonhara que neles iria trabalhar.

A travessia durava, em média, quinze minutos. Durante esse tempo ia até à cabine do piloto ou falava com os outros colegas.

Chegado ao destino, o processo de atracagem era sempre igual: atirar os cordames ao operário que se encontrava no cais e ambos — cada um de seu lado — fixavam-nos aos cabeços: com uma destreza de mãos faziam efeitos na corda de modo a intercalar os laços. Os passageiros mais apressados acumulavam-se junto à porta de saída: esperavam que a mesma tivesse a menor brecha possível que permitisse a passagem e raspavam-se a correr para qualquer outro transporte. Do lado do cais, também se formava um grupo que teimava em aguardar junto às grades esperando que as mesmas se abrissem.

À medida que a manhã se estendia, o número de pessoas a fazer a travessia aumentava. Sid ia vendo caras conhecidas que o cumprimentavam e lhe davam dois dedos de conversa: gente trabalhadora que morava na sua freguesia ou caras conhecidas do respetivo horário.

— Bom dia — cumprimentou um individuo.
— Bom dia, Vitó — cumprimentou de volta Sid.
— Tem sido dura a manhã?
— Só o início! Tenho que me habituar ao horário.
— Ao menos não chove… apesar do frio.

Sim, o sol não era intenso e o frio teimava em ficar, mais ainda para quem está ao pé do mar. Mas já dava sinais de Primavera.

— Bom dia — cumprimentou Sid mais uma cara.

Depois do almoço o serviço mantinha-se igual: atira cordame, recolhe cordame, amarra cordame. Valia-lhe a duração da travessia em que — através de uma escotilha usada para ver o cais — se hipnotizava a observar o mar a bater no casco, formando uma espuma branca que se estendia a alguns metros da popa da embarcação. Frequentemente passavam por barcos da mesma companhia que faziam o sentido contrário e se se olhasse bem, conseguia-se ver algumas caras meio turvas que olhavam pela janela.

O barco parou, os motores deixaram de se ouvir. Ele caminhou apressadamente ao encontro do piloto e perguntou o que havia e se precisavam de ajuda na casa das máquinas. Não era necessário, o maquinista já estava a averiguar a coisa e não era nada importante; apenas um sensor que tinha que ser reiniciado. Apesar das inúmeras vistorias estas paragens aconteciam. Eram embarcações que estavam sempre em funcionamento com um desgaste maior.

Sid voltou para o seu posto. Não contava ficarem parados muito tempo, mas daí a nada os passageiros iam querer uma resposta. Ele só queria estar ali sossegado a ver o mar e a sentir a sua brisa através da escotilha.
“Podia estar assim um bom bocado”, pensou ele.