Neste pobre fim de tarde, pobre de tão desinteressante, recosto-me no sofá da sala e preparo-me para escrever uma nova crónica. Respiro fundo. Olho as largas janelas que escorrem do tecto, onde duas plantas mirradas observam o que se passa lá em baixo, na rua, com a curiosidade de gatos velhos.
Pelos vidros, vejo as copas dos grandes plátanos do parque, baloiçarem numa agitação incomum, inclinando-se para a esquerda, para Poente, apontando as Américas. É lá que vai acontecer, daqui a nada, o eclipse total do Sol.
Reparo como o céu escureceu e ficou vazio de pássaros. O que horas antes, tinha sido o Sambódromo de pombos, pardais e andorinhas, está agora reduzido a um túnel de nuvens e poeiras do deserto. Pouco a pouco, vão-se acendendo luzes nos apartamentos dos prédios defronte, como iluminações de Natal de árvores de cimento, sem amor e sem vontade. Daqui a minutos, vai ter início o Eclipse. Será visto nos países da América do Norte. Em Madrid, onde estou de férias há uns dias, não. Aqui, na semana passada, a Primavera chegou e quase que foi atropelada por um sprint do Verão. Mas hoje, o Inverno ganhou a corrida, regressando em força, como um tirano pouco disposto a abandonar o seu vasto reino. Com ele voltou o frio, empurrado por ventos fortes, impondo um céu escuro e ameaçador de chuva.
Não sei onde iremos parar com tantas alterações climáticas. Mesmo aqueles que dizem tratar-se de fantasias da Teoria da Conspiração, têm de vestir roupa quente para aguentar este gelo ou ter de andar quase despidos, noutros pontos do planeta, com o calor a subir acima dos cinquenta graus.
Infelizmente, só vemos o que sabemos, podemos ou queremos. Estamos condicionados por tantos factores internos e externos, que a vida é realmente, o que cada um imagina dela. Pena que nos tenhamos perdido de Alberto Caeiro, heterónimo de Fernando Pessoa, quando alertava para a importância de nos mantermos vivos no campo, disfrutando do plano das Sensações e não da complexidade tóxica das emoções urbanas. Como seria interessante reinventar o mundo só com os sentidos, sem julgamentos de nenhum tipo e em contacto com a natureza. Viver na plenitude do ser activo e contemplativo. Deixar para trás complexos e traumas da Era Antiga.
Gordos pingos de chuva começaram a suicidar-se, esborrachando-se uns de encontro os outros, nos vidros das grandes janelas. Olho-os, enquanto escorrem, atraídos pela Terra. Em miúdo, achava que cada pingo de chuva devia descer das nuvens de paraquedas. Já tinha visto neve a cair e parecia-me muito mais elegante e, seguramente, uma aterragem menos dolorosa. Depois, com a chuva devia ser uma confusão de paraquedas no solo, mas o tapete que se formasse, teria um branco esplendoroso. E era só o tempo de os guardar nas mochilas, para a natureza tornar às suas cores originais. O problema das gotas de água virem lá de cima de paraquedas, é que deixaria de haver Arco-Íris ou seriam todos brancos? Também devia ser bonito! E as trovoadas, com os paraquedas todos abertos, e os relâmpagos a contra-luz? Gostava de poder criar essa realidade, bem mais divertida do que esta, nos tempos que correm.
“Que pouca sorte não poder assistir ao vivo, ao Eclipse” — pensei. Dizem que em 2026 haverá outro, que poderá ser visto em toda a Península Ibérica — bebo um golo de chá de gengibre e curcuma, já está meio morno, e continuo a divagar.
Lembro-me, de aos quatro anos, ter assistido a um Eclipse parcial do Sol. O pai tinha chegado a casa com uma caixa cheia de lentes de óculos escuros, de cores diferentes, que um amigo lhe tinha oferecido. Os meus irmãos e eu sobrepúnhamo-las, permitindo-nos olhar para o sol, sempre que quiséssemos, sem ferir a vista. Naquele dia, viemos para a grande varanda do nosso apartamento e fizemos montinhos de quatro e cinco lentes, para assistir ao fenómeno. Trouxemos cadeiras e uma bandeja com copos e um jarro de limonada, que a mãe tinha feito para nós. Nada melhor do que ter as condições ideais para assistir àquela maravilha de espectáculo. Visto pelas lentes, o Sol estava como se fosse de noite, a ser tapado por um círculo lunar, opacamente escuro, até quase o fazer desaparecer.
Na altura, já tinha lido “O Templo do Sol” das aventuras do Tintim. Quando o Eclipse acabou, fui a correr buscar o livro, que falava de um eclipse total do sol no Peru, no segundo quartel do século passado. Reli-o e deliciei-me com os desenhos. Vi no livro, o dia ficar coberto de trevas, parecia coisa de lendas medievais. E então, nos dias seguintes, montava as lentes coloridas, para ver o nascer do sol e talvez um dragão que voasse à beira dele. De noite, fazia o mesmo com a lua, mas com menos lentes, claro. O que é certo é que passava horas na varanda, fosse de dia ou de noite. Dali, podia ver o Atlântico e como o Sol e a Lua se reflectiam nele. E deixava de ser eu. Sentia-me uma folha de árvore da mata ao lado de casa. Nada era mais importante do que poder assistir a tantos momentos de beleza.
O céu de Madrid não pára de escurecer. Chove mais. De um rádio, numa varanda vizinha, chega-me o desespero inquietante de uma mulher a cantar Flamenco. Um helicóptero sobrevoa o prédio onde estou. Dois carros da polícia passam acelerados, aqui à porta, num exagero de sirenes e luzes azuis intermitentes, bem ao estilo Nova-Iorquino. E recordo o filme “Blade Runner”. Tive a oportunidade de o rever há dias, em Lisboa, em casa de uma amiga. Incrível como a percepção do realizador Ridley Scott, em 1982, o deixou prever o que seria o futuro do nosso planeta, sempre poluído, sem sol e com chuvas torrenciais. Brilhante! No momento em que tanto se fala de robôs e inteligência Artificial, seria curioso que se voltasse a ver o “Blade Runner”, um filme de amor, sofrimento e de medo.
As sirenes continuam a apitar e fico a ver os carros da polícia a desaparecerem na esquina. O helicóptero, com um forte projector apontado para o passeio, manteve-se fixo no ar por alguns segundos e também ele seguiu os outros. Não sei a razão pela qual a polícia me inquieta. Agita-se qualquer coisa em mim, como um medo profundo, que me deixa inseguro. Tantas vezes aconteceu, que julgo ter sido um bandido noutra vida. E agora, vamos começar a ter polícias-robots e Inteligência Artificial por todo o lado que, cedo ou tarde, se voltarão contra nós, para nos controlar. O Matrix, a Trilogia — tornou-se uma referência cinematográfica para quem quiser entender o que nos pode estar a acontecer e o porquê disto tudo. O cansaço da Demagogia e do Populismo, dão-me ganas de evadir do planeta, e ir para outro, recomeçando tudo de novo, já que este não vai aguentar muito mais tempo.
Entretanto, a chuva parou. Olho o relógio. Eclipse já deve ter começado. Durante as duas últimas semanas, os média não se calaram com previsões alarmantes, cozinhadas em caldeirões de poções tóxicas, especulando que à hora exacta em que a lua se sobrepusesse ao sol, todos os aparelhos electrónicos poderiam registar anomalias ou deixar de funcionar. O Medo a tornar à ribalta da sociedade, como peça fundamental de manipulação de massas. Em resumo, se tal acontecesse, seria assim como um aflorar da Idade Média ou da distante Pré-História.
As dificuldades de viver sem electricidade, transformariam quaisquer edifícios habitacionais e de escritórios em cavernas de desespero. No pânico gerado nos grandes centros, onde se desvalorizou o diálogo de viva voz, multiplicando as estéreis conversas nas Redes Sociais, a depressão atingiria o cume. Não suportando o confronto com o silêncio, parte da população enlouquecida, optaria pelo suicídio, como forma de salvação, pondo fim à dor e aos problemas. Outra parte, adaptar-se-ia às novas condições, mesmo que limitadas. E ainda uma minoria abandonaria a cidade para se refugiar na pacata vida da aldeia, onde tudo faria mais sentido.
Tais pensamentos fizeram-me confrontar com algo ainda mais excepcional: o Eclipse da Mente. Este Eclipse aconteceu, quando deixámos de pensar pelas nossas cabeças, dando à Lua dos Média, o direito de se intrometer entre o Sol do nosso Pensamento e o nosso corpo físico assente na Terra. Com a vontade própria enfraquecida, deu-se espaço a um tipo de Informação cada vez mais manipuladora mastigasse e nos metesse na boca, o que se devia pensar.
Depois da razão ter sido brutalmente anestesiada, foi praticamente impossível voltar-se atrás e deixá-la contagiar pela vida e suas maravilhas, como antes acontecia. O contacto com a natureza e os quatro elementos foram deixados para trás. Tudo se tornou uma prisão de cimento, uma escravatura camuflada, a contar a história dos dias, obviamente todos iguais, e a necessitar da adrenalina das fake news. Uma tragédia!
No trabalho ou no descanso, seguimos coleccionando cromos diários da caderneta das nossas vidas, para futura avaliação no céu ou no inferno. A vida nas cidades potenciou a cilada. Muitos são os que vivem iluminados por luz artificial. Hoje, praticamente ninguém anda descalço na rua, perdeu-se o contacto directo com a terra, e já ninguém adormece ao luar. De qualquer forma, as notícias terríficas lançadas pelos média, como sementes venenosas, cobrem a atmosfera do pensamento com substâncias tóxicas.
Já deve ter terminado o Eclipse. Continuo com o telemóvel e a net activados, e o mundo não acabou. Que grande canseira que é a desinformação! Deve ter havido gente a arrancar os cabelos, com muito medo da catástrofe anunciada. Durante a vida, quantos fios de cabelo se espalharam no tempo como penas ou pedrinhas, indicando o caminho de regresso ao ponto inicial? Como marcas sucessivas dos locais por onde passámos, que grandes tapetes dariam, se os tecêssemos. Vêm-me à memória, imagens de campos de concentração e prisioneiros carecas, homens e mulheres, a quem roubaram o cabelo para fazer roupa e enchimentos de almofadas. Fico triste por isso. E não pára de chover!
Sempre gostei de perucas. Acho uma invenção fantástica, sobretudo para serem usadas no inverno, como excelente substituto de chapéus, boinas e bonés. Pergunto-me como seria se as perucas de cabelo verdadeiro, fossem feitas de madeixas de tipos diferentes? O que seria ter na mesma peruca, diferentes texturas, cores, tamanhos e densidades? Seria possível que a carapinha, o cabelo encaracolado, ondulado, liso, ruivo, loiro, castanho, preto ou grisalho convivessem numa mesma cabeça, como parte dessa simbólica “Cabeça-Terra”, em penteados multiétnicos? Assim como os Jardins Verticais são mosaicos de diferentes plantas, as cabeças poderiam ser interessantes mosaicos de madeixas de diferentes cabelos. Penso que o resultado final seria interessante.
Na rua, cães de trela surgem excitados para os seus passeios, de fim de tarde, com os donos. O mundo pode estar a acabar, mas os cães sempre trarão consigo a curiosidade, e bem mais acesa do que a consciência da catástrofe. Ainda bem que assim é! Alguns cruzam-se e cheiram-se. Outros reagem mal, ladrando desesperados, aos que lhes são maiores.
Seguramente, este eclipse podia ter rebentado com os aparelhos eléctricos e também com o nosso corpo electromagnético. Podíamos, todos, ter morrido ou ficado gravemente doentes. Mas não foi assim! E ninguém pediu desculpa pelos boatos e falsos alarmes, lançados ao Deus dará. É que já estão na forja outras mentiras explosivas para que as audiências sigam sempre em alta.
Neste circo de egos, na palhaçada do “diz-que-disse”, somos complacentes com a mentira como se fosse a verdade. A falta de brio profissional leva a que grande parte da informação seja incorrecta, de tão imprecisa e pouco justa. Assim, prefiro não ver, nem saber. Ignorância de informação por opção. E nunca à hora das refeições. Passo grande parte do meu tempo, a ver DVDs de filmes por mim escolhidos, não precisando de me entupir de mentiras. Ver bons filmes é assim como um filtro contra a insolação espiritual. E quanto melhor o filme, maior a protecção.
A rua encheu-se de silêncio e senti um arrepio percorrer-me o corpo, ao recordar um ano e meio de confinamento geral. Parece ter sido há muito tempo, mas não. A COVID-19 manteve-nos em casa, ocupados com o medo. Durante todo esse período, não comunicámos mais, não buscámos mais interesses, descobrimos que não tínhamos a mínima paciência para familiares e amigos. Assim, tornámo-nos todos em árvores sedentárias de folha caduca, o que significa que tarde ou cedo teremos de aceitar o ciclo da vida, tendo a duração equivalente às quatro estações.