Caiu numa sexta-feira aquele 19 de julho de 1942. O mundo inteiro amargava, atônito, os movimentos da guerra planetária que, àquela altura, parecia sem fim. A blitzkrieg nazista evidenciara a sua força em todo o espaço europeu – Polônia, Bélgica, França. A ofensiva fascista seguia o exemplo, avançando jusante no Mediterrâneo, por Etiópia, Líbia, Grécia.

O generalíssimo Franco plasmava o espírito desses movimentos em seus condomínios ibéricos. Os japoneses já tinham agredido os chineses, a ponto de legar para a posteridade as cenas e os grunhidos do massacre de Nanquim, e também já haviam promovido a barbaridade de Pearl Harbor ante os norte-americanos, obrigando-os a, novamente, engajar-se, fisicamente, em todos os teatros de operações.

O marechal Pétain já tinha desonrado a França, a Europa democrática e toda a confluência espiritual do Ocidente com a capitulação seguida da assinatura de um armistício com o Reich, na presença de seu mandatário, Hitler. O primeiro-ministro, Winston Churchill, desesperado, já havia atravessado, múltiplas vezes, o Atlântico para falar em pessoa com o seu último e único aliado fiável, o presidente norte-americano, Franklin Delano Roosevelt. O ditador Stálin, do outro lado do mundo, já tinha acoimado a ofensiva da Wehrmacht às portas de Moscou. E o ditador Getúlio Vargas, no Brasil, ainda hesitava sobre o que fazer quando chegou aquele dia 19 de julho de 1942.

Ninguém verdadeiramente ilustrado passou indiferente àquele dia. As ondas curtas e médias de todas as estações de rádio anunciavam um grande evento. O renomado maestro italiano, Arturo Toscanini, faria uma primeira audição, ao vivo, na National Broadcast Company (NBC), da Sétima Sinfonia do extraordinário maestro e pianista russo, nascido em São Petersburgo, em 1906, Dmitri Chostakovitch.

Todos os entendidos pressentiam a potência daquela peça. Tratava-se de um réquiem. Feito uma ode aos soldados mortos. Notadamente àqueles vitimados em combate. Uma ode à guerra patriótica. Não necessariamente aos comunistas nem ao ditador Stálin. Mas à vida e ao fluir humano. Tudo contra Hitler. Sempre como encorajamento de resistência moral aos desígnios nazistas, fascistas e extremistas dos admiradores do Reich. Tudo como um elixir ao espírito. Um bálsamo de esperança. Uma projeção de vitória. Uma demonstração de que a música, antes e acima de tudo, também serve de arma de guerra.

Essa peça – a Sétima Sinfonia – fora feita num dia só, o 5 de março de 1942, em Kuibyshev, às margens do rio Om, para onde Chostakovitch fora evacuado, após ter servido como bombeiro da defesa civil, em sua cidade natal, agredida pelas investidas da Wehrmacht. Uma vez composta, a partitura da peça foi microfilmada, depositada, em segredo, numa caixa de conserva, remetida em avião do Volga para Teerã, depois em carro e por terra até o Cairo, em seguida, novamente, em avião para o Brasil e do Brasil – seguramente do Rio de Janeiro – até Nova Iorque, aos cuidados do notável maestro italiano Arturo Toscanini.

Uma vez executada, não teve como: tornou-se mundialmente afamada como o hino de resistência à barbárie nazista. Pode não parecer, mas esse feito começou a fraturar um dos mais importantes pilares da política cultural nazista, conduzida por Joseph Goebbels, que entoava “Deutschland, das Land der Musik” [Alemanha, terra da música].

Desde a naturalização de extremismos na paisagem política europeia nos anos de 1930, a criação musical foi tornada um dos núcleos da ofensiva totalitária. Já em 1933, Goebbels, de par com Hitler, conceberam o Reichsmusikkammer para supervisionar músicas, músicos e educadores musicais em todo o território alemão. Como consequência imediata, estabeleceram uma oposição frontal entre a música de raízes românticas – considerada como a quintessência da superioridade do povo alemão – e a música moderna, atonal, negra, judia e bolchevique, considerada degenerada.

Desse modo, a partir de 1935, o jazz norte-americano foi proscrito na Alemanha. Ao mesmo tempo – um pouco antes ou depois –, foi a vez da música atonal, difundida pela segunda escola de Viena e protagonizada por Schönberg. E não tardaram a ingressar nesse índice as obras de Kurt Weill e Hanns Eisler.

Quando se fez, em Düsseldorf, em 1938, a grande exposição de arte degenerada, fez-se, então, uma sessão de Entartete Musik [música degenerada]. De maneira que, quando o Reich avançou sobre a Polônia, em 1939, a cartografia sobre o que ouvir e não ouvir estava bem posta. Entre o permitido, incentivado e – até – endeusado estava tudo proveniente de Wagner, a Nona Sinfonia de Beethoven, a obra de Bruckner, assim como de Mozart, Schubert, Schumann e Brahms.

Tão logo o conflito ganhou proporções, Goebbels e Hitler voltaram a refletir sobre o significado da música para o Reich. Perceberam, assim, que tempos de guerra deveriam primar pela difusão de músicas mais leves em lugar de composições eruditas, longas e de difícil apreensão instantânea. Por isso, já em fins de 1939, 70% do conteúdo radiofônico alemão continha músicas leves, ritmadas, aceleradas e otimistas. Adiante, em 1941, conceberam uma orquestra alemã de dança e música leve e determinaram a criação de um jazz “nacional” e antissemita.

A Sétima Sinfonia de Dmitri Chostakovitch, executada em Nova Iorque, naquele dia 19 de julho de 1942, inaugurou a ofensiva planetária contra Hitler, o Reich e sua visão deformada e deformadora da vida e da cultura. Uma sinfonia, portanto, histórica. Que merece ser ouvida e guardada.