A metáfora da vida de Assa Matusse, cantora moçambicana, traduz-se por hipóteses conturbadas e mal explicadas. Ao crescer e optar pela música, o seu pai absteve-se de intervir, por não desejar vê-la cair nas mesmas armadilhas que ele e tantos outros músicos enfrentaram. Contudo, a artista não se dobrou; perseverou no seu caminho e, na sexta-feira, dia 1 de março, encheu o emblemático Centro Cultural Moçambique — China, em Maputo, numa homenagem ao progenitor. Mutchangana, o espetáculo, o maior da sua carreira até à data, confirmou a sua excelência artística e a convicção de que nasceu para o estrelato.
Se, até às 20h, persistiam dúvidas de que, naquela sexta-feira, naquele imponente edifício, uma rapariga do bairro de Mavalane faria história, essas foram dissipadas por volta das 20h30, momento em que o auditório começou a encher-se de forma subreptícia, tornando a espera francamente compensadora. Às 20h50, o som dos tambores marcou o início do espetáculo, transformando os gritos e os sussurros da Companhia Nacional de Canto e Dança (CNCD) em ondas sonoras que envolveram o público em momentos de puro delírio. Assa Matusse, radiante, emergiu entre os gritos e a fumaça do palco, e, com uma voz única, proclamou: “we Mutchangana…!”. O som ecoou pela sala, levando os presentes a momentos de êxtase. E assim deu início ao espetáculo!
Assa Matusse vem da França, onde vive há dois anos. Ousada, depois de lançar, no ano passado em Paris, o segundo álbum “Mutchangana”, decidiu regressar ao país para “renovar as energias”, segundo contou dois dias antes do concerto, numa conferência de imprensa. A volta a Moçambique, sua terra natal, tem múltiplos significados na vida e carreira da artista, e o mais essencial traduz-se na reconexão com a sua espiritualidade, renovação das forças e da esperança.
O álbum “Mutchangana” (nome do espetáculo da sexta-feira) presta homenagem ao seu pai e a todos os povos Bantu (o maior grupo etnolinguístico de África), que, por muito tempo, foram privados de usar e expressar as suas línguas nativas. Foi, talvez, por isso que a CNCD abriu o palco, aos gritos, a impor ondem, atenção; a reconsolidar a moçambicanidade, através dos seus ritmos. Fez o seu “show”, relembrando os saudosos tempos de uma companhia sólida, estruturada e artisticamente sagaz! E se, realmente, o tempo molda, a companhia precisa reinventar-se, ser mais participativa e representativa. Ou…terá o mesmo destino de sempre: o esquecimento!
Quanto à Assa, não era preciso ser vidente para expectar que o seu concerto nunca seria qualquer coisa de vulgar. Dona de uma voz poderosa, a artista mostrou-se mais segura. Se calhar, o apreço do público — que se notabilizou através da adesão do mesmo ao concerto e dos aplausos desde o início — tenha a deixado mais confiante, criativa e, incrivelmente, mais decidida. “Pensei que pudessem me desapontar”, confessou, minutos depois de executar alguns temas.
Mas aqui ninguém defraudou ninguém! O publicou encheu a sala do novo centro cultural e ela fez mais do que um concerto; uma experiência de dança e canto imersivos, ou uma performance artística hipnótica. Na sexta-feira, Assa mostrou pertencer a outra dimensão de artistas moçambicanos, que se preocupam com o crescimento. Está mais madura, segura e com o timbre mais renovado — esse dom que a torna singular. A sua presença em palco, mostra outras formas de fazer música, de atuar.
Os elementos da luz, do som, complementaram o sucesso das atuações. O preto, o verde e o vermelho são as cores predominantes, com as luzes a instituírem sempre um ambiente misterioso. É como se o imaginário que corresponde ao luto, à esperança, ao amor, respetivamente — a incrível sensualidade, o negro e vermelho, duas linhas que separam a dor do prazer —, fosse transportado para o palco através de gestos sinuosos e voz encantadora e arrepiante.
Os temas sucederam-se uns aos outros de forma contínua ao longo de, quase, duas horas, com o palco ocupado, para além dela, por António Marcos, Deltino Guerreiro e da Companhia Nacional de Canto e Dança. “Mata Ni Tayenna”, segunda música do dia, confirmou essa magia, já atuando a solo. “Chegou com suas coisas”, e com tudo, acompanhada por Válter Mabas, na guitarra, Stélio Mondlane, na bateria, Albano Bove, no baixo, e o francês Nicolas Vella, no piano e nas misturas eletrónicas.
Inquestionável, é também, a capacidade de execução destes instrumentistas. Se bem que o que há de novo neles é a vibe alinhada às exigências da protagonista. Cada um tem um percurso artístico cujos anos podem ser avaliados em função dos resultados da forma como se relacionam com essa arte. Eles produzem uma música que — longe do encaminhamento que a composição vocalizada sugere —, de per si, é uma narrativa crescente, com um começo, um desenvolvimento e uma conclusão, que até se confunde com a metáfora da vida — essa ideia de nascer, crescer, reproduzir-se e cumprir, por fim, o destino dos Homens, a morte.
Stélio, por exemplo, emergiu no princípio da década de 2010 e destacou-se no mesmo período quando, em 2013, concorreu para o Ngoma Moçambique e, logo à primeira, venceu a parada. Idem para Valter Mabas cujo percurso a solo inicia em 2003, em um concerto no Gil Vicente Café em Maputo, onde divulgou pela primeira vez os seus temas originais. Bove é baixista de mão cheia e Nicolas um produtor e artista com uma abordagem mais moderna e rica, com influências do jazz, pop e soul.
A verdade é que, mesmo para quem não gosta de música ao vivo, a experiência de contemplar os instrumentistas a reinventarem-se no palco é ímpar. A música feita com banda, repita-se, propõe aos ouvintes uma experiência sonora única. Fica-nos claro que é preciso potenciar esta prática. Ela representa uma atitude. E eles bem sabem ser ousados quanto misteriosos.
Essas influências são bem notáveis nas músicas do novo álbum de Assa. E a razão é simples: foi Nicolas Villa quem as produziu. “Mata Ni Tayenna”, por exemplo, é potencialmente recomendável e, na sua temática, desarma a atitude irresponsável de alguns e rende-se à paz, enquanto estado de ausência de perturbações e agitação. Um verdadeiro hino, num tom desesperado, dramático, rendido: “já chegou com seus problemas”, diz-se repetidas vezes na música cantada em changana, sua língua materna.
Como é de seu costume, Assa abusa da sua criatividade e mistura elementos comuns de afro jazz e afro fusion para apresentar um material agradavelmente inusitado aos ouvintes. Para o espetáculo, escolheu 15 músicas, dos seus dois álbuns, que criaram uma estrutura audível única, apaixonante, crescente e narrativa. Cantou, seguidamente, Sombeco, Menina do Bairro, Litle Girl, Meu Canto, Nitxintixile, Looking For, Rokotxi, com Deltino Guerreiro, +Eu, Jé suis Malade Dèja?, Aprendeste Aonde e Aqui Preço — outro hino sobre o custo do sucesso e o preço do sacrifício.
Sempre abusando de várias vibrações, Assa fez, em quase duas horas do espetáculo, transições à capela, scatsinging, scatvoice e em brincadeiras com o público e com a banda. Em suma, foi um “show” e eles cumpriram o rigor que se impõe com uma marca nas lides: cantar e tocar como sempre e brilhar como nunca.