Com certeza, vocês já assistiram a um filme que os conectou de forma imediata. Não? Pena! É uma sensação estranha e prazerosa ao mesmo tempo. Eu adoro cinema. Filmes bons, filmes ruins, filmes maravilhosos, todo tipo de filme. Para ser sincero, deixei de gostar de filmes de terror. Mas essa é outra história.
Poucos filmes que eu me lembro causaram aquela sensação de saudade, antes mesmo de terminarem. Quando assisti “E.T.” pela primeira de várias dezenas de vezes, senti uma angústia a medida em que o filme se aproximava de seu final. Eu não queria que aquela experiência mágica terminasse. Quando o E.T. entrou em sua espaçonave para partir, caiu-me a ficha de que o veria pela última vez. Está bem, eu era um adolescente na época.
“Vidas Passadas” (Past Lives), filme da estreante realizadora coreana Celine Song, causou-me esse mesmo encanto e, ao mesmo tempo, angústia pelo seu fim. Na história, sabemos que o protagonista terá apenas dois dias na cidade para conectar-se com seu amor de infância depois de 24 anos distante. A medida em que o tempo passa e suas horas vão se esgotando, ficamos com pena de o filme terminar e perdermos aquela experiência e brutal carga de emoções daquele encontro.
Um filme modesto em todos os sentidos, com três atores apenas, falado grande parte em coreano, e de “baixíssimo” orçamento: custou USD 12 milhões comparado a um custo médio hoje de produções de Hollywood acima dos USD 100 milhões. “Vidas Passadas” já arrecadou cerca de USD 30 milhões em bilheteria de cinemas, e recebeu duas indicações para os Óscares nas categorias de roteiro original e melhor filme do ano.
No meio de filmes de super-heróis, bonecas e bombas atômicas, “Vidas Passadas” nos traz um frescor e uma delicadeza no tratamento de uma história um tanto quanto pessoal da realizadora. Como a protagonista Nora, Celine Song emigrou da Coréia do Sul quando era uma criança, para o Canadá e em sua juventude para os Estados Unidos, especificamente para Nova York para tornar-se uma escritora.
Na história de Vidas Passadas, Nora, ou Na Young (seu nome na Coréia), deixa um amigo de infância muito próximo, o Hae Sung, aos 12 anos de idade. Talvez, se ela não emigrasse eles cresceriam como amigos e namorados quem sabe. Havia aquela cumplicidade entre as duas crianças e, eu diria, uma intimidade expressa nas mãos dadas dos jovens protagonistas.
Eles se separam.
12 anos depois, eles se encontram através das redes sociais. Ele na Coréia e ela em NY. Reatam uma amizade pura, mas a medida em que eles sentem algo crescer entre videochamadas de Skype, Nora despede-se e, mais uma vez, dá adeus à possibilidade de uma vida na Coréia. Ela não quer reviver seu passado e está sempre olhando para frente, para seu futuro na América.
Outros 12 anos decorrem e Hae Sung chega em NY para uma curta viagem. Ele quer encontrar sua amiga de infância. Ele nunca a esqueceu, e nunca teve um relacionamento amoroso duradouro. Nora, por sua vez casou-se. Seu marido Arthur é um escritor, como ela, e vivem uma boa relação. Mas será que a chegada de Hae Sung poderá afetar sua vida.
Eles se encontram.
O que vemos é um encontro pontuado pelos silêncios, pelas distâncias, pelos olhares, pela ternura de uma amizade, ou talvez um amor nunca consumado. Os passeios dos dois por uma Nova York belissimamente fotografada é cadenciado por um ritmo que não estamos acostumados a ver no cinema. Cada palavra tem significado, e aquela horas juntos vai despertando uma angústia em ambos. Em Hae Sung, por ter finalmente encontrado seu amor de infância. Mas Nora tem outra vida, outro relacionamento. Apesar de ter conquistado seus objetivos pessoais e profissionais, não consegue evitar o abalo emocional que a presença do amigo lhe traz.
O trabalho dos atores Greta Lee e Teo Yoo é primoroso. O John Magaro, que faz o Arthur, o marido de Nora, também está espetacular. Num drama romântico qualquer, ele seria o vilão que impede o casal de ficar junto no final. Mas não nesse filme. Conseguimos ter uma empatia por ele, e esta é uma das razões pela qual “Vidas Passadas” desconstrói as regras do gênero. É a vida real, uma sucessão de escolhas e consequências. Mas, e se…?
Arthur pergunta a Nora “e se…?”, no que ela responde: “Não é assim que vida funciona”; “Aqui é onde estou, onde eu deveria estar” Não veríamos esse tipo de texto num filme de Hollywood, por exemplo. Além disso, em uma narrativa convencional de 3 atos, como o cinema está acostumado a utilizar, teríamos a infância e juventude no primeiro ato, e a viagem e o encontro do casal num 2º ato. O 3º ato seria dedicado à resolução do triângulo amoroso. Mas aqui não é assim. Temos uma estrutura de roteiro disruptiva, que encontra outras soluções dramáticas para a história. Na primeira cena do filme, temos os três protagonistas sentados num bar, e uma voz (off) de uma pessoa que observa a cena (assim como nós observamos o filme) que tenta entender o triângulo. Voltamos, então, 24 anos para o início da história. Daí por diante temos uma narrativa sempre crescente em intensidade dramática, até a última cena.
O grande mérito é da roteirista e realizadora Celine Song. Em seu filme de estreia, ela entrega um cinema de altíssimo nível. Todas as suas escolhas são acertadas: o elenco, o texto, a fotografia, o ritmo da narrativa. Há cenas que certamente tornar-se-ão icônicas no imaginário do Cinema, como o casal sentado, um distante do outro, a trocar olhares fixos, tendo ao fundo um carrossel meio desfocado, representado a infância dos dois. É um belo trabalho. Celine é muito segura no filme que realiza. Quero assistir a mais filmes dessa criadora, que, a julgar por “Vidas Passadas”, terá uma carreira muito promissora no futuro.