Alguns diretores de cinema destacam-se pela forma arrojada, criativa, e eu diria até ousada de seus filmes. Eles são criadores, artistas e autores de uma arte coletiva, mas imprimem uma marca individual notável. Em todos os gêneros cinematográficos vamos encontrar esses autores que imprimem uma marca pessoal em seus filmes. Scorsese, Woody Allen, Spielberg, John Ford, Truffaut, Fellini, Fernando Meirelles, entre tantos (poucos) outros.

Talvez o mais icônico dos realizadores, aquele que criou um gênero cinematográfico próprio seja Alfred Hitchcock. Conhecido como o “mestre do suspense”, Hitchcock foi muito mais do que isso. Eu o considero como um divisor de águas na história do cinema e o criador mais importante no cinema do século XX. Ele desenvolveu a linguagem do cinema como nós conhecemos hoje, desde os anos 20 quando começou a dirigir filmes na Inglaterra até “Family Plot” (Trama Macabra), seu último filme de 1976.

Hitchcock revolucionou a narrativa e a estrutura dramática dos filmes. A começar pelos os temas, apostando na empatia do público como o homem comum colocado em situações inusitadas e, muitas vezes sobre-humanas, sempre como muito suspense. Ele revolucionou a edição, a fotografia, os efeitos visuais práticos para a criação de realidade. Foi um manipulador das emoções e dos sentidos de sua plateia. Um mestre que inspirou grandes realizadores da nossa geração.

Christopher Nolan possivelmente é o mais fiel seguidor das pegadas de Hitchcock. Ele é um mestre do suspense? Não. Mas imprime em seus filmes momentos de tensão e suspense como ninguém. O ritmo de seus filmes, marcados por uma edição sempre primorosa, aliado a um trabalho de som espetacular, consegue criar aquela atmosfera de prender o fôlego. Mesmo num filme histórico como Oppenheimer, onde sabemos o final, o desfecho do protagonista, e a maior parte do filme são diálogos em salas de interrogatório, ficamos grudados na cadeira.

Nolan e Hitchcock se assemelham em muitos pontos. O tema do homem comum, por exemplo, está presente na obra de Hitchcock em filmes como “The Wrong Man” (O home errado), “The Man who knew too much” (O homem que sabia demais), “The Birds” (Os pássaros), “Rear Window” (Janela indiscreta) ou “North by Northwest” (Intriga Internacional). O que dizer do tema nos filmes do Nolan? O soldado de “Dunkirk”, o fazendeiro de “Interstellar”, o protagonista de “Tenet”, por exemplo.

Um tema recorrente na obra de Hitchcock é o “double motif” ou, numa tradução particular, “os duplos”, que envolve a comparação ou o contraste entre dois personagens que representam forças opostas. É característico em filmes como “Spellbound”, (Quando fala o coração) “Strangers on a Train” (Pacto Sinistro), “Shadow of a Doubt” (A sombra de uma dúvida), ou mesmo “Rear Window” onde o motivo aqui aparece com o contraponto entre os dois protagonistas, os personagens interpretados por James Stewart e Grace Kelly. Para Hitchcock, “os duplos” servem para estabelecer uma conexão psicológica entre seus personagens e a plateia.

“The Prestige” (O grande truque) pode ser o filme de Christopher Nolan onde o tema dos duplos está mais presente, na história dos dois mágicos concorrentes, que levam a sua competição pessoal ao extremo. Percebemos o tema também em obras como os 3 filmes da trilogia do Cavaleiro das Trevas (Batman), em “Interstellar” onde pai e filha conduzem a história através do temo e do espaço, literalmente. Até mesmo em “Oppenheimer” uma história de tensão entre o protagonista que dá título ao filme e seu opositor político e pessoal Lewis Strauss.

Nolan é inovador na edição de seus filmes. Até pode parecer confuso a princípio, mas ele sempre costura suas tramas de forma impecável e impõe ritmos frenéticos. Quem não ficou meio perdido em “Dunkirk” ou “Tenet”? São filmes difíceis, mas quando se juntas as pontas, transformam-se em obras cinematográficas espetaculares. Obras que são impossíveis de serem transpostas para outra forma de arte como a literatura ou o teatro. É cinema na sua maior pureza. Assim como Hitchcock, Nolan tem desenvolvido a linguagem do cinema, e sua técnica, a ponto de começar a criar seu próprio gênero de filmes.

Ambos são muito gráficos em suas imagens. Ambos são grandes contadores de histórias através dos meios visuais. Ambos se utilizam dos efeitos especiais práticos, isto é, aqueles que são criados no set de filmagem e não em pós-produção. Cada um a seu tempo, é verdade, com os recursos que dispunham e dispõem. As manias dos dois são notáveis. Hitchcock guardava seus filmes a sete chaves, com segredo sobre a produção. Nolan também. Ele é tão obcecado com o sigilo que os scripts entregues aos atores são impressos em preto sobre papel vermelho, para evitar que sejam fotocopiados.

Tanto Hitchcock quanto Nolan têm parceiros familiares notáveis. Alma Hitchcock, esposa de Alfred é considerada uma grande força na criação da obra de seu marido. Alma era editora e roteirista e creditada em vários filmes do mestre. Christopher Nolan tem uma parceria de longa data com seu irmão e roteirista Jonathan Nolan. Além disso, sua esposa Emma Thomas é produtora de todos os seus filmes.

Para os atores, trabalhar com Nolan é uma honra e um presente. Alguns atores o acompanham em vários de seus filmes. Vejam, por exemplo, Cillian Murphy, Christian Bale, Michael Caine, Kenneth Branagh. Em entrevistas, alguns deles dizem que ao receber o convite de Nolan, aceitam sem mesmo ler o roteiro. O mesmo acontecia com Hitchcock, que tinha parcerias com atores do calibre de James Stewart, Grace Kelly e Cary Grant.

Os filmes criados por Nolan têm naturalmente uma personalidade própria. Mesmo com a semelhança em estilo com Hitchcock, Nolan abre o espectro de suas histórias para um componente de fantasia e ciência ao mesmo tempo, que não estavam no arsenal de Hitch. Enquanto ele possui uma paixão pela história em si, pela dimensão dos acontecimentos que afetam os personagens, Hitchcock, por sua vez, preocupava-se mais no impacto psicológico em sua audiência. Podiam ser histórias simples, como um cadeirante preso em seu apartamento a observar o comportamento da vizinhança através de sua janela indiscreta, mas que o diretor transformava numa aventura de prender a respiração. Nolan vai a uma dimensão fantástica, entra num buraco negro e manipula o tempo e os sonhos. São abordagens distintas.

Talvez Nolan seja um criador mais “sério” na sua busca pela perfeição. Hitchcock, com toda a tensão e o medo que provocava em sua plateia, parecia ser um autor mais bem-humorado. No estilo inglês, é verdade. Em todos os seus filmes havia alguma cena ou situação inusitada que provocava risos. Lembrem-se das próprias aparições do diretor em seus filmes (todos), quase sempre numa situação cômica: O homem tentando entrar com o contrabaixo no trem em “Strangers on a train”; o passageiro vizinho do Cary Grant em “To Catch a Thief” (Ladrão de Casaca); o homem que sai da pet shop com dois cãezinhos em “The Birds”, ou aquele que perde o ônibus em “North by Northwest”. Um alívio cômico para a tensão das histórias que contava.

Eu gostaria muito de perguntar ao Christopher Nolan, caso algum dia possa entrevistá-lo, se ele se sente inspirado por Hitchcock. Eu realmente acredito que na história do cinema, as gerações de realizadores constroem sua arte sobre os alicerces das gerações anteriores, de todo o acervo cinematográfico produzido até então. As conquistas tecnológicas, linguísticas e artísticas são incorporadas como uma evolução natural. De tempos e tempos, porém, surge algum criador que rompe, ou melhor, salta uma etapa evolutiva e nos surpreende. Christopher Nolan tem nos surpreendido filme a filme, como Hitchcock surpreendeu a plateia em boa parte do século XX. Imaginem que filmes ele estaria realizando nos dias de hoje!