Em dado momento do interrogatório que embora apenas a pretexto será o gancho narrativo de Nos Vemos no Paraíso (Au Revoir là-Haut - França/Canadá, 2017), Albert Maillard (Albert Dupontel) conta que seu amigo Edouard (Nahuel Biscayart), combatente da I Guerra Mundial – na qual um salvou a vida do outro – agora artista anônimo e cúmplice no inquérito de homicídio e estelionato que então os incrimina, lhe disse que passou a preferir a arte abstrata porque entendera ser mais importante retratar as emoções do que a realidade. O delegado considera essa declaração do depoente “muito abstrata” para que conste dos autos do inquérito.

Essa pequena anedota pode ser tão somente mais uma das que incrementam e aliviam o formidável drama a que vamos nos afeiçoando ao longo do filme, mas que serve para nos chamar a atenção para o fato de que o próprio roteiro, recheado de peripécias, demonstra que a mera subjetividade não pode falar por si, que as abstrações verdadeiramente significativas que provamos nas entrelinhas da vida não são apreensíveis senão através de nossa jornada pela realidade.

De fato, a par da intriga meio policialesca que aos poucos vai desenhando a trama, a genialidade criativa, os artifícios miméticos e pictóricos, as fantasias alegóricas e as seringas de opiáceos de que o personagem Edouard se utiliza derivam de sua dificuldade em suportar o ressentimento afetivo contra o pai severo (o excelente Niels Arestrup) que não sabe que ele ainda está vivo, do peso da mãe morta ainda jovem como culpa daquele mesmo pai, assim como da deformidade do rosto desfigurado por um estilhaço de morteiro durante a guerra (cujas cenas, diga-se de passagem, não deixam nada a desejar às grandes produções hollywoodianas).

Sob as máscaras e disfarces engenhosos e até iridescentes que Edouard concebe com festiva alacridade – e que conferem ao longa uma requintada camada músico-teatral –, porém, em seus olhos crispam dor e desencanto, mas também a rebeldia que alimentará seu desejo de vingança mais que o de suicídio. Sem sorte, dinheiro ou fidalguia, seu fiel companheiro de desventuras, Maillard, acaba embarcando nas brilhantes contravenções articuladas pelo amigo mascarado de felino, arlequim ou faisão, depois que se convence de que o mundo não é mais que uma farsa pérfida na qual ele é apenas um passageiro da agonia.

Pode-se especular que desde as trincheiras da guerra, os desenhos e pinturas de Edouard eram uma forma inconsciente de busca ou retratação, uma maneira de deixar um rastro para que no futuro, se sobrevivesse, pudesse afrontar o odiado pai, ou seja, superar a opressão que sentia na infância; ou que Pierre Lemaître, autor do livro em que se baseou o roteiro, no qual ele também colaborou, achou desnecessário ou sequer atinou com as bandeiras atuais sobre a questão da sexualidade que seu personagem Edouard pudesse levantar. Afinal, a jornada da vida humana é universal, e as distintas experiências de cada um equivalem-se em abstração.

Com efeito, o filme se basta, em beleza, em coerência, em honestidade. Tanto quanto em sua intenção de que suas imagens e impressões continuem reverberando após seu encerramento. Aliás, mesmo no desfecho de Nos Vemos no Paraíso o esperado final feliz titubeia, mas esse vacilo é um premeditado trunfo. Talvez porque seus heróis, verossímeis, reconheçam sua condição de clandestinos. O que os livra da pecha de vitimização, de serem falsos ou piegas, já que todos, saibamos ou não, em algum grau, temos culpa no cartório quando contamos apenas a nossa versão da história.

O depoimento de Maillard, que constitui a voz de fundo que recapitula os eventos de Nos Vemos no Paraíso, narra que após a assinatura do histórico Armistício de Compiègne, que em 11 de novembro de 1918 suspendeu as hostilidades entre os países beligerantes da Primeira Guerra Mundial, ninguém queria mais lutar, por um motivo muito simples: todos sabiam que “, ser o último a morrer seria tão estúpido quanto ter sido o primeiro”. É muito provável que não foram “abstrações” literário-filosóficas sobre a guerra que amoedaram essa sentença, mas o testemunho genuíno de algum esclarecido sobrevivente, assim como não teria sido senão a tormentosa lembrança de um soldado real o que inspirou a cena em que Maillard, soterrado após uma explosão, escapou da morte por asfixia graças ao cavalo morto com quem dividiu a cova aspirando pelo focinho o oxigênio residual preso nos pulmões do cadáver do animal até que Edouard o resgatasse.

Por sua vez, Albert Dupontel, que dirige o longa e interpreta o resignado Maillard, emprestou-lhe sua veia tragicômica, meio charleschapliniana, seu olho duro e assustadiço diante do absurdo das coisas. Sem emitir um único lamento quase, Maillard apenas vive sua complacência com o acaso, com a maldade, com a confissão de que a guerra possa ter sido uma oportunidade contra seus fracassos na vida civil. Guardadas as devidas proporções, Dupontel buscou a essência do drama no que ele tem de mais burlesco e fatídico através da própria experiência de quem deve ter passado por situações similares na vida real, tão desconcertantes e dolorosas, e sem as quais suas meras abstrações não lhe teriam bastado para compor um filme tão peculiar e arrebatador.