Após a visualização do filme “Step across the border” de Nicolas Humbert e Werner Penzel, considerei pertinente tecer algumas considerações sobre a ligação intertextual que se coloca entre cinema e música: Qual será a relevância da música para o cinema? Como é que uma arte implica a outra?
"Step across the border" é um documentário sobre o talentoso guitarrista: Fred Frith. Fred Frith é um compositor e músico inglês. Nascido em 1948, cedo começa a explorar as potencialidades da composição musical - sendo o seu foco principal a criação de novos sons, Frith move montanhas para explorar diferentes raízes e progressões musicais. "Valorizo muito o contacto com os locals que estão a organizar o concerto, descobrir como são as suas condições e como é a música na sua área" - diz Frith no minuto 9:45. O filme segue Fred Frith nos seus ensaios, atuações e nas suas viagens - Tóquio, Nova Iorque e Leipzig. O espetador sente-se quase como um intruso, alguém que é transportado para a cena musical vanguardista do rock dos anos 90. É um testemunho de cenas casuais, do ambiente e do background musical de Frith - o espetador testemunha conversas, entrevistas, criação e experimentação musical. Um portal para o mundo de Fred Frith, quer diretamente - já que partilha alguns dos seus pontos de vista sobre a música - quer indiretamente.
Decidi desenvolver uma reflexão sobre as pontes que se criam em torno da música e do cinema, precisamente por considerar “Step across the border” uma investigação da intertextualidade, dos muitos papéis narratológicos da música no filme - de como diferentes meios de arte se ligam profundamente no processo de criação de significado e simbolismo. Este documentário é essencialmente um diálogo entre dois meios artísticos diferentes: a música e o cinema. É um retrato cinematográfico do guitarrista inglês e é também uma forma renovada de uma criação artística: uma criação que estabelece uma verdade universal: a música como arte que vem dar um novo significado (e um novo universo) a outras expressões artísticas - neste caso: à imagem.
Pudovkin, Eisenstein and Alexandrov's manifesto argued against using sounds as flat literal illustrations of images and in favor of audiovisual counterpoint, wherein sounds declare their independence and act metaphorically, symbolically (O manifesto de Pudovkin, Eisenstein e Alexandrov argumentou contra o uso de sons como ilustrações planas e literais de imagens e a favor do contraponto audiovisual, em que os sons declaram sua independência e agem metafórica e simbolicamente) – assume Michel Chione em 'The voice in Cinema'. Afirmando, como já foi referido, a potencialidade do cinema para desenvolver outras formas e meios de criação, mas também proclamando a música como um instrumento narratológico por si só - declarando a música como um elemento de um sistema fílmico mais alargado, mas que é independente e que cria por si só novos sentidos e significados simbólicos na imagem. Como se processará isto?
Como Eisenstein coloca em 'A statement': Only a contrapuntal use of sound in relation to the visual montage piece will afford a new potentiality of montage development and perfection (Somente um uso contrapontístico do som em relação à peça de montagem visual proporcionará uma nova potencialidade de desenvolvimento e perfeição da montagem) (Eisenstein, Pudovkin and Alexandrov). É interessante pensar – tendo como contexto este filme em particular - como o som altera a perspetiva do espetador – e, como, de facto, o espetador vê o som e como esse mesmo som põe em movimento uma visão particular de mundo.
Recuaremos no tempo: É certo que o cinema precisava do som muito antes de serem inventadas tecnologias que efetivamente potenciaram a sua sincronização com a imagem – já que eram utilizadas orquestras que levavam o filme atingir (quase) a sua plenitude narrativa e simbólica. É em meados do século XX, a par do sistema Vitaphone, desenvolvido pela Warner Bros. em parceria com a Western Electric – que os meios de produção e receção da sétima arte se alteram por completo. Tornam-se mais complexas as narrativas e pressupõe-se a criação de uma linguagem cinematográfica assente no som e no que se pode fazer com ele – os espetadores são acolhidos e envolvidos em universos de sentidos e o cinema aproxima-se significativamente da realidade.
Porém, se antes o som em cinema serviria meramente para compactar com a imagem, tornando-se aliado às suas pretensões e ideais – mais tarde, torna-se, como referido anteriormente, e a par de um desenvolvimento ainda maior das tecnologias audiovisuais modernas, um elemento independente de tudo o resto. Age simbolicamente e desliga-se de funções literais, operacionalizando relações e associações conceptuais. Pudovkin exemplifica esta ideia na sequência do seu filme Deserter (1933). No filme, observa-se uma manifestação de trabalhadores. A mesma música acompanha 3 cenas diferentes: a vitória da polícia; o erguer da bandeira dos trabalhadores e a sua vitória. Ao invés de considerar a utilização de sonoridade que pontuasse a cena em conformidade com a imagem, Pudovkin assume manipular a perceção que o espetador tem da imagem por via de um som independente que cria ambiguidades por via de uma disparidade simbólica (a música vitoriosa que parece contraditória à derrota dos trabalhadores, mas que depois vem trazer um novo sentido ao espetador).
É possível então definir-se som como um impulsionador fantasioso. Estabelece um caminho, um percurso interior que vem ajudar o espetador a olhar. Trazendo uma perceção específica da imagem que é proveniente de uma associação subjetiva e mental de ideias. Em “Step across the border”, o som é um intermédio para uma viagem onírica interior – é a declaração da supremacia musical que se concretiza no espetador a depositar (e, quando digo espetador, refiro-me a mim e à minha própria experiência na condição de espetadora) confiança e dependência no som para fazer significar o que se vê.
Tive um professor em Paris que a respeito deste filme me disse: C’est-à-dire que Step te demande de collaborer avec ta tête, avec ta propre fantaisie. (Ou seja, Step pede que você colabore com sua cabeça, com sua própria fantasia) - mencionando o papel do som como uma espécie de indutor à interioridade – os grandes planos de multidões em Tóquio e os acordes de um piano que toca calmamente e sem pressa. Ora, assumir uma narratologia associada ao som é também assumir o papel semiótico do espetador e a sua capacidade para a fantasia. Este filme é um rio no qual o espetador flutua em direção a algo: a dentro de si.