O cinema é mais do que uma expressão artística ou uma forma de entretenimento. Ele é um espelho da nossa realidade, uma forma de resistir ao silenciamento e um ato poderoso de preservação da memória. No Brasil, o cinema tem sido essencial para construir nossa identidade cultural e registrar momentos cruciais da história do país. Das feridas abertas pelo colonialismo aos anos sombrios da ditadura militar, passando pelas lutas sociais e pela vida cotidiana que pulsa nas periferias, o cinema brasileiro oferece um olhar único e crítico sobre os desafios, as contradições e as riquezas que moldam nossa trajetória enquanto nação.
Desde os primeiros passos da sétima arte no país, com comédias e melodramas que dominavam as décadas iniciais, até os ventos transformadores do Cinema Novo nos anos 1960, o cinema brasileiro nunca deixou de dialogar com a realidade social. Sob a lente inquieta de cineastas, filmes passaram a refletir as desigualdades, as lutas e os sonhos de um povo que sempre resistiu. A história do Brasil, contada em nossos filmes, na maioria das vezes não se limita à factualidade. Ela se mistura à poesia, à crítica, às dores silenciadas e à necessidade urgente de revisitar o passado para entender melhor o presente.
Vivemos em um país marcado por apagamentos históricos e disputas narrativas. O silenciamento é uma prática recorrente, seja na negação das violências cometidas durante a ditadura militar, na distorção sobre o genocídio dos povos indígenas ou no esquecimento sistémico das vozes periféricas. Hoje, a extrema direita, armada com negacionismos e fake news, tenta moldar uma ilusão criminosa sobre a história brasileira. Em resposta a esse cenário, o cinema se levanta como um antídoto contra o esquecimento e a manipulação. Contar histórias verdadeiras é um ato político e social.
Nesse contexto, filmes como Ainda Estou Aqui se tornam cruciais. Baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, o longa-metragem dirigido por Walter Salles reconta a história de Eunice Paiva, mãe do autor. A protagonista é interpretada com maestria por Fernanda Torres e Fernanda Montenegro que rendeu, merecidamente, à primeira o Globo de Ouro de melhor atriz em Filme de Drama. Eunice enfrenta o horror da ditadura militar após a prisão e o desaparecimento de seu marido, Rubens Paiva (Selton Mello), deputado cassado pelo regime no início dos anos 1970. Mas o filme não para por aí. Ele nos conduz pela passagem do tempo, acompanhando Eunice também em sua luta contra o Alzheimer, uma nova batalha travada contra o esquecimento.
É nesse ponto que a narrativa do filme revela um paralelo doloroso e simbólico: o Alzheimer que atinge Eunice reflete individualmente o apagamento histórico promovido pelo silenciamento político. Enquanto o Alzheimer corrói as memórias individuais de Eunice, a ditadura e seus resquícios promovem o esquecimento coletivo de um país. O filme, assim, nos convida a refletir sobre como a perda da memória – seja ela biológica ou política – afeta a identidade de uma pessoa ou de uma nação inteira.
O Brasil tem uma relação complexa e, em muitos momentos, incômoda com seu passado recente. A ditadura militar, instaurada em 1964, foi um período de tortura, assassinatos, censuras e violações de direitos humanos que deixou cicatrizes profundas no tecido social brasileiro. Ainda assim, é uma história que insistimos em não olhar de frente. Enquanto países vizinhos, como Argentina e Chile, tomaram medidas para responsabilizar os culpados, o Brasil ainda luta para reconhecer suas feridas e curá-las.
Nos últimos anos, o revisionismo histórico tem ganhado espaço no debate público. Frases como “não houve ditadura” ou “a tortura é invenção”, que antes pareciam absurdas, agora ecoam nos discursos de figuras públicas. É nesse contexto de negacionismo e obscurantismo que Ainda Estou Aqui ganha um peso imenso. O filme é um ato de resistência. Ele traz de volta as vozes silenciadas e humaniza os relatos frios dos arquivos oficiais.
O filme de Walter Salles não apenas reconta a história, mas a vivifica, conectando o passado ao presente e lembrando que as memórias do trauma ainda ecoam nas vidas de muitas famílias brasileiras. Outra reflexão que emerge é sobre como o cinema brasileiro pode inspirar transformações sociais. Histórias como as de Ainda Estou Aqui não apenas recontam o passado, mas também incentivam debates sobre direitos humanos, justiça social e os limites do poder do Estado. Essas narrativas evidenciam que, sem enfrentarmos nossos erros históricos, continuaremos reproduzindo violências no presente. O cinema pode, portanto, ser um catalisador de denúncia e mudanças, aproximando a sociedade de debates muitas vezes negligenciados.
O título, carregado de simbolismo, é uma promessa: as memórias da dor e da luta ainda estão aqui. Elas ecoam na vida cotidiana das famílias que nunca tiveram respostas, nos gritos abafados pelos porões da ditadura e nas cicatrizes que a história tenta encobrir. O título do filme ressoa como um aviso: as vozes silenciadas não serão esquecidas. Elas ainda estão aqui – ecoando através da arte, da memória e da luta por um Brasil que lutará para que o autoritarismo não mais se repita.
Memória é resistência. Resgatar histórias reais é um ato político. O cinema, nesse sentido, é um espaço privilegiado de luta contra o apagamento. Enquanto discursos oficiais tentam reescrever a história, filmes como Ainda Estou Aqui devolvem voz àqueles que foram silenciados e nos obriga a confrontar as consequências de regimes autoritários e o preço pago por aqueles que ousaram resistir. Cada cena, carregada de humanidade e delicadeza, nos lembra que o sofrimento vivido não pode ser reduzido a um capítulo incômodo nos livros de história. Ao assistir Ainda Estou Aqui, somos confrontados com o nosso passado sem romantizações e com um questionamento fundamental: como podemos seguir adiante sem reconhecer nossas próprias feridas?
Mais do que um filme sobre o passado, Ainda Estou Aqui é um alerta para o presente e uma promessa para o futuro. Ele nos lembra que a história não é estática. Ela pulsa, exige ser ouvida e vivida. Decisões atuais sobre a punição ou Anistia aos golpistas do ato de 8 de janeiro em Brasília nos lembram de Anistias anteriores que tornaram impunes atos criminosos como os relatados no filme e que seriam repetidos, caso o Golpe fosse bem sucedido. Minimizar ou ignorar a gravidade dessas ações só reforça a impunidade e enfraquecem a Democracia. Não podemos correr o risco de esquecer e repetir os mesmos erros.
O cinema brasileiro tem esse poder: refletir a imagem de um país que, muitas vezes, reluta em se enxergar. A imagem refletida pode ser incômoda, pode nos confrontar com verdades dolorosas, mas é apenas através desse enfrentamento que podemos transformar nossa realidade. Filmes como Ainda Estou Aqui nos desafiam a lembrar quem fomos, quem somos e quem queremos ser.
Valorizar o cinema brasileiro é mais urgente do que nunca. Em tempos de ataques à cultura, censura velada e cortes de investimento, a produção audiovisual nacional se torna um ato de sobrevivência. Cada filme é um manifesto contra o silenciamento, uma ponte entre a arte e o ativismo. Enquanto houver cineastas dispostos a contar essas histórias, haverá uma luta contra o obscurantismo.
Ao sairmos de uma sala de cinema após assistir a um filme como Ainda Estou Aqui, levamos mais do que uma experiência estética. Levamos a responsabilidade de preservar a memória, de honrar os que vieram antes e de construir um futuro mais justo e consciente. Que o cinema continue sendo esse instrumento capaz de romper as trevas do negacionismo. E, como o próprio título sugere, enquanto resistirmos, a história continuará viva.
Ainda estamos aqui... e continuaremos.