O Cinema Marginal surge, como a própria definição diz, à margem do então Cinema Novo. Assim como na análise de Fernão Ramos, tal cinema surge em oposição ao que se legitima no mundo do trabalho e político que o Novo se propunha a realizar. É um mundo do prazer, é identificação com o povo, o favelado, é a sensação que proporciona ao indivíduo em sua singularidade. O corpo quer falar, é só ouvir.

A tal chamada “curtição” como fonte de choque da moral burguesa e o quadro ideológico da crítica social audiovisual da época era o embate entre ambos. Assuntos não considerados pelo politizado Cinema Novo, eram os temas do Marginal. As drogas, o sexo livre, o não-trabalho, a falta de um objetivo na ação, os personagens vazios, deslocados e perdidos nas situações que se encontram, perspectiva de tortura, corpos dilacerados servindo como instrumentos de uma performance, antropofagismo cultural, tropicalismo, a sujeira, a ruindade, o lixo, o cafajeste, o humor irônico, quadro de humor irônico e debochado, o avacalho e a vontade de fazer o melhor com a baixa renda são as principais características do Cinema Marginal.

Como um filho rebelde do Cinema Novo, os marginalizados dos anos 60 e 70 receberam muitos nomes das Vanguardas: Cinema de Arte, Cinema Puro, Essencial, Abstrato, Rítmico, Poético, Cinema Maldito, Underground, Marginal, Novo, Independente, Visionário.

Diante de tantas definições, o cenário deste cinema nasceu do imprevisível. É neste contexto que surge José Mojica Marins, um dos mais famosos nomes do movimento. Artista, cineasta, roteirista, ator e diretor, ele é um homem de muitas facetas. Imprevisível, tal qual o tempo que habita, e um marco no terror trash do cinema marginal experimental de sua época, Mojica ainda inspira legiões de fãs do seu trabalho.

José Mojica Marins nasceu em 13 de março de 1936 na Vila Madalena, em São Paulo. Neto de espanhóis e filho de dois artistas circenses, ele era uma criança de família simples e artística, vinda de uma fazenda pertencente a uma fábrica de cigarros para tentar a sorte na cidade grande. Agora instalados nos fundos de um cinema na Vila Anastácio, os pais trabalhavam na bomboniere. Enquanto isso, o pequeno Mojica lia gibis, ficava horas na sala de projeção do cinema, brincava de teatro de bonecos de papelão e montava narrativas recheadas de fantasias. Mal sabia que seu futuro seria exatamente o mesmo que apenas brincava quando criança.

Aos 12 anos, sua carreira já dava seus primeiros passos. Ganhou uma câmera V-8, com a qual não parava de filmar suas obras artesanais que eram exibidas em cidades pequenas. Nos anos 40, fez o curta “Juízo Final”, no qual experimentava suas técnicas. Filmou muito de seus medias e primeiros longas mudos com 16 mm ("A Mágica do Mágico", "Sonhos de Vagabundo", "Beijos à Granel" e "A Voz do Coveiro"). Em 1956, cria a Ibéria Cinematográfica, emendando em seu primeiro filme sonoro em 35 mm: “Sentença de Deus”, sobre um pai de família que se suicida após ir à falência. Em extremo aperto financeiro, seu filho Antônio vira motorista de uma tentativa de assalto para tentar sustentar a mãe e a irmã. Nunca revelado ou finalizado devido a morte precoce de uma das atrizes, seu primeiro filme lançado sonoro e completo foi em 1957, com o faroeste “Sina de Aventureiro”.

Mojica criou também no mesmo ano, uma escola de interpretação intensa e experimental, posteriormente dando origem a sua Sinagoga em 64. Ele mesmo dava aula na escola de atuação para amigos e vizinhos, com quem fundou a Companhia Cinematográfica Atlas, já de olho em um gênero muito específico: o terror. O terror escatológico o seguiu desde seu primeiro contato com cinema. A temática só ganhou proporções mais concretas em 1956, com sua escola de atores voltada especialmente para interpretação corporal performática e treinamento para situações extremas —como cenas com aranhas e cobras —, que seriam utilizadas em seus filmes, não muito tempo depois. Em 1964, a tal sinagoga artística ganhou mais destaque.

Muito versátil, Mojica explorava o lado de dentro e de fora das câmeras. Participou de documentários, embora poucos, como um dele próprio (o Estranho Mundo de José Mojica Marins, 2001), além de compor a trilha sonora para este, e um sobre Sganzerla (Signos da Luz). Costumava atuar na grande maioria dos filmes que dirigiu e roteirizou, adentrando também com a produção (já que os recursos financeiros do cinema marginal eram, quase sempre, baixos, sem envolvimento do governo e tirados do próprio bolso).

Em 1962, criou o seu mais icônico e o que viria a ser o mais conhecido de todos os seus personagens: Zé do Caixão. Uma figura sinistra que, segundo o próprio diretor, nasceu de um sonho no qual um homem de capa preta e cartola o pegava e o arrastava para um túmulo com a data de sua morte. Assustado, Mojica usou sua criatividade e transformou seu medo em filme, personificando tal figura e seguindo com o personagem nos demais filmes. Sua estreia foi em "À Meia-Noite Levarei Sua Alma". O personagem lhe rendeu fama internacional e ficou conhecido como Coffin Joe.

Durante as décadas de 70/80, pós auge do cinema marginal, Mojica experimenta o pseudônimo J.Avelar para experimentar sexo explícito em suas obras. Além disso, participou e dirigiu alguns programas na televisão, como o “Show do Outro Mundo”, na emissora Record. Somente em 1996 retoma o trash com o filme “Adolescência em Transe”.

Alguns de seus maiores sucessos na época do cinema marginal são: "À Meia-Noite Levarei Sua Alma"; “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver”; “O Estranho Mundo de Zé do Caixão”; “O Despertar da Besta”; “Finis Hominis”; “Inferno Carnal” e “Delírios de um Anormal”. Todos esses são poucos de uma longa lista de trabalhos que finalizam no seu mais recente projeto em 2014: “As Fábulas Negras”. Até chegar aqui, filmes trashs, pornográficos, documentários sobre si mesmo e seus personagens, obras teatrais e performances animalescas moldam seu estilo filmográfico.

Com 59 anos de carreira, mais de 44 obras audiovisuais no currículo e com a grande proeza de fazer o cinema trash ser respeitado e reverenciado dentro e fora das fronteiras nacionais brasileiras, o tornando cult, José Mojica Marins só prova que foi um marco no Cinema Marginal, e continua sendo um dos mais marcantes e excêntricos diretores da história do Cinema Brasileiro.

Na parte dois deste artigo, meu foco será nas obras do diretor trash, mais especificamente no filme “À Meia-Noite Levarei sua Alma (1964)”, percorrendo seu caminho em busca de um lugar ao sol da marginalidade. Com filmes de horror bem-feitos e de baixo orçamento, uma grande surpresa diante dos gastos altíssimos deste tipo de gênero em Hollywood, e temas que sempre fugiam à curva dos demais diretores da época, Mojica tinha um olhar muito pessoal e uma imaginação muito fértil. Disposto a elevar os patamares dos temas tabus que o cinema Marginal tanto explorava, ele brincava com o sentimento mais puro, instantâneo, involuntário e irracional do ser humano: O medo. Suas obras, aparentemente apelativas ao explícito visual, são na verdade recheadas de subjetividade.