"Minha esposa está chorando no quarto lá em cima, é quase meia-noite, há carros chegando. Consigliere, diga ao seu Don o que todos já parecem saber". Um homem doente, fragilizado, que recentemente sofreu um atentado a tiros levanta de sua cama para tentar colocar a família de pé. E então a notícia devastadora: o filho mais velho foi assassinado.

O cenário é sombrio e silencioso e basta ao ator que as lágrimas caiam para transmitir a dor maior. Mas não se trata de um ator qualquer. É Marlon Brando dando vida a Don Vito Corleone e o que se vê nos dois ou três minutos seguintes é um aula de atuação, com a direção única de Francis Ford Copolla e a parceria luxuosa de Robert Duvall, na pele de Tom Hagen.

Brando fica em silêncio e de seus olhos transbordam milhares de emoções: dor, raiva, frustração, abandono. Entretanto, dez segundos depois, a frieza volta, ele dá ordens e diz que não quer qualquer ato de vingança. "Essa guerra termina aqui". Don Corleone reassume o comando da família.

Qualquer outro ator, fraco, bom ou excelente, faria a mesma cena e o filme seguiria até o final e talvez muitos não perceberiam qualquer coisa de diferente entre uma e outra cena. É nesse momento que entra aquela faísca que diferencia os gênios dos outros seres normais.

Entre o silêncio, a dor e a frieza, Brando deixa escapar, de forma quase intuitiva, um longo suspiro. É uma sutileza que só os grandes mestres possuem: mexer com as emoções deles mesmos (e dos outros) apenas com um pequeno gesto. A partir daí - e até o final do filme - mesmo que Don Corleone não esteja em cena, é muito difícil não percebê-lo em cada palavra dos outros personagens ou mesmo em cada imagem até os letreiros finais.

"O Poderoso Chefão" ("O Padrinho", em Portugal), é apenas um dos muitos momentos em que Marlon Brando reinventou (do jeito dele) a profissão de ator. E esse mestre, em abril de 2024, completa 100 anos.

Odiado e idolatrado

Por sinal, em julho faz 20 anos que Brando faleceu. Sua vida foi recheada de grandes atuações no cinema, polêmicas fora das telas e tragédias pessoais que o desgastaram nos últimos anos. Mas uma coisa é inegável: desde que surgiu na Sétima Arte em 1950, com “Bravura Indômita”, é difícil encontrar outro ator que não o tenha, pelo menos minimamente, com referência. Muitos o detestam e outros tantos o idolatram. Mas uma coisa é certa: não há como ignorá-lo.

Para começar, Brando dava a entender que não era um apaixonado pela arte de atuar. Chegou a dizer, na autobiografia "As Canções que Mamãe me Ensinou", que era ator porque ganhava muito dinheiro e que só precisava trabalhar três ou quatro meses por ano. Disse ainda que, ao assistir pronto o filme "Sindicato de Ladrões", que lhe valeria o primeiro Oscar de melhor ator, ficou tão decepcionado que saiu da sala sem nada dizer.

À primeira vista, seria marketing pessoal para se autovalorizar. Até isso é difícil de acreditar, porque ele sabia convencer tão bem que não havia como saber se estava sendo irônico, fazendo piada ou sendo sincero.

Recusou o papel principal em "Lawrence da Arábia" para fazer "O Grande Motim" e alegou que preferiu passar um ano no Taiti do que no deserto...(Peter O´Toole, imortalizado em "Lawrence..." deve ter agradecido ao colega). Já no final da década de 1970, para seu último grande filme, "Apocalipse Now", chegou ao set de filmagem, nas Filipinas, com a cabeça raspada e pesando 130 kg, para representar um personagem esbelto e psicótico. Cobrou US$ 3 milhões por apenas três semanas de trabalho e "enrolou" Coppola durante duas semanas em conversas intermináveis.

Quando Coppola percebeu que Brando só ficaria mais uma semana nas Filipinas, correu e filmou as cenas antológicas em que o ator aparece entre as sombras. "Você é um assassino, garoto?". "Não, sou um soldado". "Não, você não é um soldado. Você é o garoto da quitanda, que foi mandado vir aqui, pelo quitandeiro, para me cobrar a conta que eu não vou pagar".

É mais ou menos isso o que os personagens de Marlon e Martin Sheen dizem em um dos diálogos. Mas o mais assustador é o timbre do fundo das cavernas impresso no Coronel Kurtz, na sequência em que repete: "O horror! O horror!"

Um “método” intenso

Mas voltemos a Don Vito Corleone, que certa vez foi escolhido pela revista Premiere como o maior personagem da história do cinema. Antes, na ficção, o mesmo ator encarnou o pai do Superman. E, mais dez anos atrás, foi o protagonista de "A Condessa de Hong Kong", ao lado de Sophia Loren e dirigidos por Charlie Chaplin, último filme do genial criador de Carlitos. Corleone é outra peça-chave para entendermos o "método" de criação de um grande ator. Bastava que Brando tivesse feito apenas este filme para estar entre os grandes da Sétima Arte.

Não esqueçamos que "O Chefão..." foi feito em 1972 e apenas alguns meses o separam de "O Último Tango em Paris", em que representa um homem amargurado de meia idade. Trabalhar quase ao mesmo tempo com Coppola e Bernardo Bertolucci, e quase levar os dois a um ataque de nervos, não deve ter sido tarefa das mais fáceis.

Hoje sabemos que muitas das cenas foram feitas com Brando lendo suas falas, que por sua vez ficavam em vários pontos do set e mesmo nas roupas dos outros atores. Ele, é evidente, não precisava disso para ter uma grande atuação. Ainda assim improvisava e isso mudava tudo, inclusive os resultados finais na tela.

O astro foi um dos únicos a ser convincente enquanto pai e patrão, no filme onde havia duas famílias, que jamais se deviam misturar: a de sangue e a de "negócios". E isso fica bem claro em vários momentos, como naquele em que dá um tapa no rosto de Johnny Fontaine, que ele trata como um filho.

O tapa é uma fronteira entre o afeto dado ao afilhado e o chamado à ação para o homem, ali subjugado, apático e sem esperança, a quem ele diz a antológica frase, em referência a um oponente: "Farei uma proposta que ele não recusará".

São estas pequenas imagens que me vêm à cabeça quando lembro de Marlon Brando. Ele não completaria: ele completa 100 anos neste 3 de abril de 2024. Marlon Brando Jr. faleceu, é verdade, mas o astro Marlon Brando vive, brilha e é grande na constelação de estrelas do universo cinematográfico.