A série de TV Heartstopper — adaptação dos quadrinhos de Alice Oseman e sucesso na Netflix — caminha para sua quarta temporada e é uma daquelas séries que proporcionam o famoso “quentinho no coração”. Charlie Spring (Joe Locke) e Nick Nelson (Kit Connor), dois garotos do ensino médio, se apaixonam a partir de uma amizade improvável. Para quem me perguntasse há vinte anos sobre o sucesso de uma série com essa temática, a resposta seria um tanto cética.

Para aqueles que foram adolescentes nos anos 1990, testemunhar a popularização de séries com temáticas LGBTQIAPN+ hoje em dia é quase um milagre. Os tímidos — ou afeminados e caricaturizados — personagens secundários gays, que costumavam viver à sombra de protagonistas, raramente tinham um arco de personagem que não fosse pautado em sofrimento e rejeição. Interesse amoroso? No máximo, trocas de olhares.

Então, no dia 24 de maio de 2000, ia ao ar na TV norte-americana o primeiro beijo apaixonado entre dois homens no horário nobre. True Love, último episódio da terceira temporada da série Dawson’s Creek, mostrava o personagem Jack McPhee (Kerr Smith) beijando Ethan Brody (Adam Kaufman) em um campus universitário em Boston.

image host Imagem 1: O personagem Jack McPhee (Kerr Smith) beijando Ethan Brody (Adam Kaufman) em um campus universitário em Boston na série de TV norte-americana, True Love.

Esse beijo foi amplamente noticiado, inclusive em jornais impressos. Guardei um recorte por bastante tempo (uma notinha, com fotografia e tudo). Não lembro em que parte do jornal O Globo (talvez na seção Controle Remoto?), mas recordo que foi a primeira vez que li a palavra “ósculo”. No mais, era um famigerado “beijo gay”. Sim, um evento na televisão. Sempre que um casal gay ou lésbico aparecia, a possibilidade de um beijo causava rebuliço: desconfortável para alguns e emocionante para outros; uma oportunidade de se ver representado.

Uma representação designa qualquer realidade que mantém uma relação de correspondência com uma outra realidade. Só se representa o que existe, na mesma medida em que representar é fazer existir.

A linguagem, segundo o sociólogo britânico-jamaicano Stuart Hall1, é um sistema representacional. Através dela, construímos significados a partir de sinais e símbolos. Em termos simplificados, a cultura é formada por significados compartilhados, que organizam e regulam práticas sociais e influenciam nossas condutas.

Comemos de garfo e faca, sentados à mesa, não vamos à igreja apenas seminus, pedimos licença, fazemos sinal com o braço para chamar o ônibus, compramos pão na padaria (e não na farmácia). Tudo isso é possível através do compartilhamento cultural de significados. E essas representações estão presentes na TV, nos livros, nas músicas. É por isso que conseguimos compreender e nos engajar: porque entendemos o sentido.

Quando pessoas LGBTQIAPN+ (e também pessoas negras, pessoas com deficiências) não são representadas nas mídias, suas existências não são reconhecidas. Isso implica que são vistas como menos importantes. E, talvez ainda pior, quando são representadas de forma negativa (ou caricaturizada ou infantilizada), isso ajuda a perpetuar estigmas e uma ideia coletiva equivocada sobre comunidades minoritárias, invisibilizando a multiplicidade de maneiras de existir.

E essa invisibilidade é real. Quando afirmo que representar é fazer existir, quero dizer que a representação normaliza. Charlie Spring e Nick Nelson trazem à existência a possibilidade de um romance entre dois garotos no ensino médio. A maioria dos indivíduos vive suas primeiras paixões (e desilusões amorosas) na adolescência: o frio na barriga quando vê o crush na turma ao lado, amigos e amigas tentando facilitar a aproximação. É uma fase da vida importante e prazerosa, mas que é negada às pessoas LGBTQIAPN+. Adolescentes gays e lésbicas precisam suprimir sua identidade e se conformar em ser a amiga engraçada ou o amigo bom conselheiro. E quando acontece alguma paixão, ou desilusão, o choro é sempre abafado e solitário.

Esse apagamento das identidades LGBTQIAPN+ não ocorre apenas na tela; ele ressoa na vida cotidiana e contribui para um ressentimento perene, que nasce da frustração e da dor que muitas pessoas sentem ao perceberem que suas experiências, seus amores e suas vidas não têm espaço nas narrativas dominantes. Para muitos adolescentes, essa falta de representação se traduz em solidão e isolamento, enquanto a necessidade de conformar-se a papéis que não refletem quem realmente são gera um sentimento de traição a si mesmos.

Esse ressentimento se torna ainda mais profundo quando se observa a forma como as representações que existem muitas vezes perpetuam estereótipos. Em vez de verem histórias complexas e autênticas, as pessoas LGBTQIAPN+ são frequentemente relegadas a caricaturas, tornando-se objetos de riso, pena e até mesmo violência física. Isso não apenas desumaniza, mas também aliena, reforçando a ideia de que suas vidas e sentimentos não têm valor ou relevância.

Ao ver Charlie e Nick navegando por suas emoções e desafios, muitos jovens se sentem vistos e ouvidos. Eles não estão apenas assistindo a uma história; estão vivenciando uma representação que valida suas próprias experiências. Essa visibilidade pode transformar o ressentimento em esperança, mostrando que a aceitação e o amor são possíveis, mesmo em um mundo que muitas vezes parece hostil.

A importância de uma representação positiva e diversificada nas mídias é inegável. Quando histórias como a de Heartstopper se tornam comuns, não apenas normalizamos a existência de relacionamentos LGBTQIAPN+, mas também ajudamos a construir um futuro em que todos possam se sentir valorizados e representados. A visibilidade gera empatia, e a empatia é um passo crucial para a mudança social.

Por isso, ao celebrarmos séries que retratam a diversidade de forma sensível e autêntica, não estamos apenas assistindo a entretenimento; estamos contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. Representar é fazer existir, e é através dessas representações que podemos começar a curar feridas históricas e cultivar um mundo onde cada amor, cada identidade e cada história tenha seu lugar, pois é triste demais não se ver possível.

Notas

1 Hall, Stuart. The work of representation. In: HALL, Stuart. (org.). Representation: cultural representations and signifying practices. London, Thousand Oaks, New Delhi: Sage Publications/The Open University: 1997.