Você consegue consumir o audiovisual (cinema, séries, minisséries etc.) produzido fora do eixo anglo-saxônico ou mesmo ocidental? Diferentemente de um passado não tão longínquo, hoje temos inúmeras opções em nosso cardápio cultural. Há pouco mais de uma década, antes da proliferação dos serviços de streaming, até poderíamos ter algumas opções através da TV a cabo ou DVDs e afins, mas não no volume, diversificação de países de origem, gêneros e fácil acessibilidade como o que as plataformas de streaming propiciaram.

Antes, o nosso menu do audiovisual estava dominado quase que exclusivamente pela produção americana. Agora, apesar da representatividade desse país seguir forte por aqui e no mundo, temos mais opções de escolha. Resta a dúvida: aproveitamos? Aproveitamos as opções que o streaming oferece além do mundo americano? Ou mesmo ampliamos para consumir produtos de outros países do ocidente?

Existem excelentes filmes e séries argentinas, francesas, russas, polonesas, turcas, coreanas, chinesas... e cada uma dessas produções, por representar os aspectos de sua cultura, nos traz um olhar, uma abordagem diferente sobre os aspectos da vida.

Particularmente, adoro filme indiano. E filme indiano tem dança! Belas danças! Não é uma afirmação científica, afinal não fiz este inventário, mas os filmes indianos sempre têm o momento da dança. Às vezes, podemos nos questionar se a ausência da dança prejudicaria o entendimento da história como um todo e até poderemos concluir que não. Mas precisamos compreender e aceitar que a dança está ali da mesma forma que a profusão e alegria das cores, a diversidade dos deuses, castas e todos os aspectos da cultura indiana. Temos que nos permitir entrar naquele cosmos.

Me apaixonei tanto que passei uma época falando para minha esposa que queria aprender dança indiana de Bollywood junto com ela. Até procuramos algumas opções, mas ficavam distantes da nossa rotina geográfica. Tampouco sei se meu joelho aguentaria!

Ademais de toda a riqueza cultural distinta que nos apresenta, os indianos também produzem filmes de qualidade técnica impecável! Alguns com efeitos especiais em pé de igualdade aos dos filmes de Hollywood. Tenho certeza de que os filmes de Bollywood poderiam ter uma presença mais volumosa e assídua em inúmeros prêmios internacionais, incluindo o Oscar.

Por que isto não ocorre numa maior intensidade? Falta de divulgação e exibição dos filmes indianos em outros mercados? Simples rejeição à cultura indiana? Resistência ou mesmo barreira dos outros mercados? Diferentemente de outros países que até podem possuir boa produção, bons roteiros, diretores e atores, a Índia também possui uma consistente e poderosa indústria cinematográfica. Assim, fico na dúvida se os produtores de Bollywood não se interessam no mercado externo ou se os produtores de Hollywood exercem influência para limitar a sua penetração. Não sei! Mera conjectura!

Quando indico a algum amigo um filme indiano, a primeira reação que percebo é uma cara de estranhamento, como se fossem se deparar com algo de qualidade inferior. Seria este comportamento um reflexo de décadas de colonização cultural americana? Alguns poucos que aceitam a indicação e se permitem entrar no universo indiano depois me retornam maravilhados, apesar de às vezes comentarem “precisava da dança?”. Em alguns momentos estou seguro de que sim, pois transmitem ou reforçam determinadas mensagens da história ou do personagem.

Acredito que caiba para nós um exercício sobre as razões da possível rejeição ao audiovisual indiano e mesmo de outros países. Seria realmente uma questão de gosto ou fomos moldados a isto? Moldados a não termos identificação com algo que não seja da cultura americana? Às vezes, temos dificuldade até mesmo de consumir algo de outro país ocidental. Quase como o comportamento de rato de laboratório que, depois de ser exposto dezenas de vezes a uma mesma situação, passa a aceitá-la como a única possibilidade.

Já li críticas sobre um pretenso ufanismo dos filmes indianos, uma propaganda estatal etc. Esta afirmação me parece tão sui generis! Afinal, consumimos incontáveis filmes ufanistas americanos e, olha, acredito que neste quesito ninguém ganha deles.

E você? Já assistiu a filmes indianos? Não? Ficou curioso? Me aproveitando de um bom jargão do mundo corporativo: quer sair da caixinha? Ampliar seus horizontes? Então, apenas como um aperitivo, como uma sugestão para que possa se aventurar, indico três bons filmes indianos que vi recentemente (de 2022 para cá).

RRR (Revolta, Rebelião, Revolução)

O filme é uma superprodução e se passa durante o domínio inglês da Índia. Conta a história de dois indianos (Komaram Bheem e A. Ramaraju) centrados e posicionados em pontos de vista e estilo de vida diferentes. Um enraizado na sua cultura e comprometido de corpo e alma com a sua comunidade, e o outro embriagado pelas possibilidades de pertencer ao mundo inglês dentro da Índia. Algo mudará profundamente quando os dois se encontrarem.

As cenas retratam com maestria e beleza as diferenças entre a cultura e o modo de vida local e o modo de vida dos ingleses dentro da Índia. As cenas que demonstram cada um desses ambientes e como eles coexistiam são muito bem pormenorizadas e, os momentos em que se encontram, são super impactantes, praticamente um confronto, tornando-se admiráveis e revoltantes ao mesmo tempo. A fotografia, os efeitos especiais, o enredo, a atuação dos atores, a direção, o figurino, a caracterização, as músicas e danças (obviamente)... tudo no filme é grandioso, encantador, arrebatador. Estou seguro de que, se fosse um filme americano, seria daqueles que concorreriam a todas as categorias do Oscar.

Um exemplo da importância da dança no filme? Numa festa organizada pelos ingleses, os dois amigos demonstram uma dança indiana como contraponto à música e dança inglesa, como se fosse uma autoafirmação contra o domínio inglês.

Gangubai Kathiawadi (A Voz do Empoderamento)

A história é inspirada na realidade de inúmeras mulheres que são iludidas. Se passa na Índia, mas poderia se passar em qualquer país. Afinal, quantas histórias de brasileiras iludidas que acabam numa rede de prostituição na Europa não já ouvimos falar?

Uma jovem apaixonada foge com o seu namorado e descobre da pior forma, sendo abandonada em um bordel, que aquele amor não existia, era apenas um golpe. Assim se inicia a história de Gangubai Kothewali, uma indiana que se tornou prostituta a contragosto e anos depois termina liderando um processo de discussão das trabalhadoras do sexo e suas condições de vida.

Apesar de se passar num prostíbulo e em ruas e ruelas deterioradas, o filme também possui uma bela fotografia. O enredo é engenhoso e a atriz nos entrega a personagem em uma atuação estupenda! Os principais diálogos de Gangubai nos propiciam incríveis discussões e reflexões do papel da mulher na sociedade. À medida que Gangubai vai tomando pé da sua condição de prostituta, aceitando-a e querendo melhorar as condições da qualidade de vida do entorno, o enredo cresce de forma envolvente, culminando com cenas finais emocionantes.

Se tinha alguma dúvida da importância da dança nos filmes indianos, ela foi dissipada na cena “Dholida”, quando Gangubai dança como rainha indiscutível daquele pedaço da cidade, dominando toda a cena com força, beleza, altivez, exuberância, mas que ao final da dança vai demonstrando o seu cansaço por ser a Gangubai.

Pad Man (Homem-Absorvente)

Enquanto em RRR encontramos um universo mais masculino na temática principal do filme e em A Voz do Empoderamento um universo mais feminino, em Pad Man diria que os dois universos estão mais presentes em uma deliciosa comédia.

Através do inconformismo de um marido apaixonado, a comédia aborda um tema de saúde muito importante para a maioria das indianas, que é a falta de acesso a absorventes em função do seu alto custo. Te lembra algo próximo? As milhares de brasileiras que deixam de frequentar a escola por este mesmo problema!?

Na busca de uma opção mais acessível, a jornada do personagem principal vai demonstrando e debatendo, além do tema de saúde, aspectos culturais machistas de um homem se ‘intrometendo’ em um tema feminino. Outro detalhe atípico são as cenas em que há a crítica aos aproveitadores do politeísmo indiano.

Enfim, abstenha-se do nosso ambiente cultural e possíveis pré-julgamentos, entre no universo indiano e se delicie! Tente!