Numa entrevista a Ana Sousa Dias — jornalista portuguesa —, em 2004, Manoel de Oliveira — diretor de cinema português — mencionava a sua paixão pela arquitetura, deixando claro, no entanto, que preferia ser realizador de cinema. A fim de consolidar a sua resposta, acrescentou o seguinte:
[...] nenhuma arte simula a vida como o cinema. Todavia, não é uma vida. Também não é propriamente uma arte. Porque é uma acumulação, uma síntese de todas as artes. O cinema não existia sem a pintura, sem a literatura, sem a dança, sem a música, sem o som, sem a imagem, tudo isto é um conjunto de todas as artes, de todas sem exceção.
Jamais pude esquecer estas palavras, pois nelas revi aquela que é também a minha conceção do cinema. A grandeza incomparável da expressão cinematográfica reside, a meu ver, no facto de se tratar justamente dessa conjugação de várias manifestações artísticas, o que lhe permite, como nenhuma outra, criar uma impressão fortíssima no espectador.
Pareceu-me, por isso, um exercício interessante compilar alguns dos momentos cinematográficos mais marcantes que tive oportunidade de experienciar até hoje. Não pretendo, contudo, levar a cabo qualquer tentativa de classificar aqueles que considero os melhores filmes de sempre; por inúmeras razões, tal empreendimento tão-pouco seria exequível. Não é de um ranking que se trata, mas antes de explorar a intensidade com que me impactaram certas obras.
Assim, começaria pela magnum opus de Giuseppe Tornatore. Quem poderá alguma vez esquecer a portentosa cena final de Cinema Paradiso (1988), em que Totó vê uma compilação de beijos da sétima arte? Outrora censurados pelo padre, estes momentos cinematográficos foram guardados pelo projecionista Alfredo, levando às lágrimas o protagonista e dando lugar a uma das mais comoventes cenas do cinema. Em grande medida eternizada pela banda sonora de Ennio Morricone — compositor italiano —, esta passagem memorável constitui ainda um interessante exercício de metalinguagem, uma vez que estamos perante um filme que reflete, também, sobre o próprio cinema.
E a propósito de beijos cinematográficos notáveis, lembremos o momento em que Kholin beija Masha, em cima de uma trincheira, no filme Ivan’s Childhood (1962), de Andrei Tarkovsky. Com fotografia a preto e branco de Vadim Yusov, esta obra-prima do cinema russo põe a descoberto as emoções mais intensas e díspares experienciadas no âmbito de uma guerra, explorando ainda a tensa relação homem-natureza. Em boa verdade, a referida cena do beijo e o diálogo que a precede destoam do resto do filme, servindo (por esse motivo) ainda melhor a intenção de evidenciar, de forma enigmática e poética, o antagonismo emocional vivido num contexto de trauma e destruição.
É também sobre um antagonismo que se debruça o filme Belle de Jour (1967), de Luis Buñuel, no qual Catherine Deneuve interpreta Séverine, uma mulher burguesa, entediada e casada com um médico, que envereda por uma vida dupla, trabalhando durante o dia num bordel, onde explora (em segredo) a sua sexualidade reprimida. Podemos ou não apreciar esta obra do realizador surrealista, mas jamais seremos indiferentes àquele instante em que Séverine leva as mãos à cabeça e, num gesto repentino e resoluto, retira o gancho e solta a sua imponente cabeleira loira, criando um momento de majestosa beleza cinematográfica e tensão erótica.
Tensão é igualmente o que experienciamos em Once Upon a Time in America (1984), quando Noodles, à data um adolescente, espreita em segredo a dança de Deborah. Outro momento imortalizado pelo maestro Morricone, que aqui se encarrega de compor uma das mais célebres bandas sonoras de todos os tempos. Ainda que o restante filme de Sergio Leone possa dissipar-se da nossa memória, afigura-se-me impossível esquecer este flashback — um exemplo precioso de emoções tão primárias como o desejo, a paixão e o arrebatamento, mas também repleto de ecos de vulnerabilidade, arrependimento e candura, em que passado e presente se fundem para dar origem a uma cena etérea.
Ora, sirvo-me justamente do termo “candura” para refletir sobre Ikiru (1952), uma das obras supremas de Akira Kurosawa, em que nos deparamos com o drama de Watanabe, um velho funcionário municipal absorvido pelo fastidioso sistema burocrático. Após ser diagnosticado com uma doença terminal, decide dedicar-se de corpo e alma a um derradeiro projeto: transformar um terreno baldio num parque infantil. Nesta obra do mestre japonês temos o privilégio de assistir a uma cena encantadora: Kanji Watanabe, sentado num baloiço, deixa-se cobrir por flocos de neve, ao som de Gondola no Uta. O seu rosto, outrora esmaecido e fustigado, torna-se o reflexo da mais genuína felicidade — a imagem de alguém que aceita em paz o futuro, sabendo que encontrou e cumpriu o seu propósito.
E os sapatos vermelhos usados por Judy Garland no filme The Wizard of Oz (1939), quem poderá apagá-los da memória? Embora sejam um adereço fulcral ao longo de todo o filme, diria que a cena em que mais se destacam é a despedida de Dorothy da Terra de Oz, quando Glinda lhe revela que ela sempre pôde regressar ao Kansas, bastando para isso usar o poder dos seus sapatinhos vermelhos. É então que assistimos a um adeus enternecedor; a jovem segue as instruções da Bruxa Boa do Norte, batendo três vezes os sapatos e dizendo em simultâneo: “There is no place like home”. No ecrã, os ruby slippers vão dando lugar à casa de Dorothy, que surge agora a sépia, para nos levar de volta à sua terra natal e ao muito aguardado conforto familiar. Uma passagem que integra o imaginário de tantas gerações, para além de ter fomentado as mais variadas e interessantes leituras.
Penso também em Todo Sobre Mi Madre (1999), a obra que consagrou Pedro Almodóvar e ao longo da qual somos convidados a conhecer várias mulheres com histórias tão complexas quanto emotivas. Apesar de nunca ter esquecido a exuberância dos tons vermelhos na cena em que Manuela aguarda pelo filho enquanto este tenta pedir um autógrafo à atriz Huma Rojo, há um outro momento que considero extraordinário — o brilhante monólogo de Agrado, uma prostituta transexual que ilustra na perfeição o cinema de Almodóvar.
É ela a responsável pela maior parte dos momentos cómicos, mas também por aquele que me parece ser o apogeu do filme e a personificação da autenticidade que o realizador procura explorar. É no final deste monólogo, recheado de tiradas hilariantes, que Agrado profere as palavras mais comoventes e certeiras: “Porque una es más auténtica cuanto más se parece a lo que ha soñado de sí misma”.
E porque falamos de mulheres resolutas e concomitantemente vulneráveis, seria impossível não mencionar aquela cena arrebatadora de Love Streams (1984), em que Sarah, protagonizada por Gena Rowlands, desafia as conceções do seu próprio psiquiatra, referindo — com plena convicção — as palavras que dão origem ao título do filme: “Love is a stream – it’s continuous, it doesn’t stop”. A forma cabal como se pronuncia sobre o amor, sendo uma expressão da sua determinação e capacidade para amar é, ao mesmo tempo, um manifesto de extrema vulnerabilidade e impotência. O último filme de John Cassavetes é um verdadeiro estudo sobre o amor, a rejeição e o desespero.
Por fim, e porque este artigo já vai longo, relembro o filme Paris, Texas (1984), de Wim Wenders, no qual podemos encontrar a longa e tocante cena do reencontro de Travis e Jane na slot de um peep-show, em que ambos comunicam através de um espelho e de um telefone, recordando a sua trágica história enquanto casal. Ela, com o seu mítico cabelo loiro e rosto singelo, sucumbe às lágrimas ao perceber que é a voz de Travis do outro lado do telefone. Uma imagem que tem tanto de sentimental como de sombria, embora a cor seja determinante no decurso do filme. Trata-se, a meu ver, de uma das muitas cenas inolvidáveis da sétima arte, rica em densidade psicológica/emocional e sublime em termos de composição visual.
Escrever algo desta natureza (e com um limite de palavras) é simultaneamente sedutor e ingrato, na medida em que contempla sempre uma escolha e, por isso mesmo, uma exclusão de um sem-fim de obras maiores que aqui ficam por explorar. O próprio ponto de vista a partir do qual este texto se escreve é necessariamente produto de um tempo e de uma circunstância, motivo pelo qual resultaria diferente no espaço de algumas semanas, meses ou anos. Do cinema comercial ao cinema de autor, estes são apenas alguns dos momentos cinematográficos que mais me marcaram e que, no meu entender, ilustram a visão de Manoel de Oliveira: “Nenhuma outra arte até hoje pôde concretizar melhor a representação duma realidade do que o cinema. Só o sonho se lhe equivale”.