Reconhecer as sinfonias da nossa essência é combinar o firmamento do eu singular em consonância com a malha interconectada chamada coletividade. Antes da matéria, havia algo que ressoava, vibrava, uma energia primordial que unia o macro e o microcosmo e talvez orquestre ainda hoje a nossa jornada de vida.

Pode ter os sons um papel nas nossas escolhas? Poderá ser a individualidade uma ilusão necessária para a nossa experiência mundana e a memória coletiva ser a mãe de todas as decisões? É possível que já chegamos neste plano catalogados para gostar de doces, de certa cor, ou de um desporto e o som ser o responsável por isso?

Até que ponto o nosso individualismo pode ser trabalhado com os sons? Será que a composição de sons que chamamos música, consegue sensibilizar os seres e deter, no seu poder, a coletividade?

O som é a representatividade da criação, e isso é reportado em várias vertentes religiosas. No Cristianismo, passagens bíblicas enaltece e referenda o poder criador das ondas sonoras e esclarece que toda a criação, comunicação divina, espírito de vida, adoração e revelação são manifestações da matéria originada pelo som.

Para o hinduísmo, o nascimento material é gerado a partir da manifestação cósmica do mantra primordial, “OM”. Se visitarmos as religiões de matrizes africanas, vemos a ponte entre os mundos físico e espiritual, eclodido pelos sons dos tambores.

O som é a extensão do poder divino nas letras hebraicas da Cabala e no Islão. As tradições dos povos originários convida a cura dos males adquiridos pelo corpo através dos seus cantos. A teologia moderna combina conceitos da física quântica com ideias espirituais e defende que a energia molda a matéria.

O que nos faz viver ou falecer são invisíveis aos olhos, mas determinantes, como o ar, as bactérias, os vírus e tantos outros elementos que a ciência teima em conceituar. O som é um potente veículo invisível na composição de cenários e para refutar os efeitos dessas partículas, cientistas desenvolvem um instrumento que o torna visível.

Decerto que atuamos num tecido onde energias difusoras como som, campo eletromagnético, luzes, atravessam o nosso corpo permanentemente e muitos estudos na aplicação de ondas sonoras na medicina regenerativa estão em pleno vapor e com resultados proeminentes.

Platão considerava a música como uma bússola, um elemento fundamental para a formação de um povo. Os sons auscultados gera uma identidade e norteia o caráter e as práticas normativas de uma população.

Os sons são uma forma de enraizamento de consciências de um Todo que é invisível e que, ao mesmo tempo, é latente. A cada amanhecer esse retorno do sol como fonte de vida merece uma celebração e os pássaros tem claramente uma função sublime.

Recentemente li um estudo em que citava a utilização de música clássica por um produtor de um cereal energético. Ele observou o cantarolar dos pássaros ao nascer do sol e testou a reprodução de música clássica para mimar a sua plantação. Resultado: a sua produção foi impactada positivamente de forma surreal.

Trazendo isso para a nossa correlação com a natureza, os sons produzidos pelos animais ao simples nascer do sol são sinfonias eufóricas e uma celebração contagiante que desperta os cloroplastos das plantas para a fotossíntese e nos convida a celebrar a vida humana.

Será que humanidade ensurdeceu para a escuta da natureza e as suas novidades? Sem o aporte de vitamina D temos a expressão da depressão, experimentamos o sentimento de solidão e distanciamento social. E neste contexto lembro de uma afirmação feita por Tolstoi: “Há quem passe pela floresta e só veja lenha para acender a sua fogueira”.

Ouvir uma música que realmente nos faz mover, que nos transporta para outros momentos, faz o nosso corpo produzir endorfinas e isso é refletido como felicidade.

A música é considerada um instrumento de perceção e libertação. Ela é território cultural e denota que estamos todos em um mesmo barco. Composta por ritmo, harmonia e melodia, uma obra contagia cada um de forma distinta, individualizada e como magia, se transforma em muitas.

A melodia só acontece com a junção de sonetos, mensagens auditivas e por vezes assume vertentes audiovisuais. Quem não já escutou uma música e a associou a um relacionamento, um momento, um gosto, cheiro ou até uma projeção?

Não sou aqui uma etnomusicóloga ou teórica da música, nem detenho as ferramentas de aprofundamento neste assunto, mas como leiga, assumo um papel provocativo quanto a questionar o som na nossa construção como sociedade.

Imagine uma criança a cantar no coro e entender que a letra segue um ritmo compostas de tempos, que devem ser respeitados, para apresentar um resultado harmonioso e aqui deixo a apologia da reinserção das aulas de música nas cadeiras académicas…

A sequência de aprendizado normativo é: aprender a letra, cantar e ouvir a sua própria voz, ajustar o ritmo com os demais, lembrar dos tempos, paradas e tons. É um exercício de individualidade, mas, não individualista, que ignora o impacto no Todo. Tem a personalidade específica cunhada na coletividade, ou seja, tenciona a produção de um resultado conjunto.

Os filósofos defendiam que a música convoca a consonância, a vibrar junto, rebaixar ou aumentar o estado de consciência. Mas uma vez, cito Platão que comparava o nível de um Estado pela música que alimentava o seu povo.

O que definimos como as “nossas escolhas,” podem ser advindas das nossas conceções ou ecos de uma memória coletiva que atravessa campos invisíveis e esculpem a nossa consciência, mas essa dualidade pode ser trabalhada intencionalmente e compor uma eloquente sonoridade neste emaranhado dual que se denomina existência.