No dia 31 de março de 2024, completaram-se 60 anos do golpe militar. Uma semana antes, a Mubi inseriu em seu catálogo os filmes “O que é isso, companheiro?”, do diretor Bruno Barreto, e “Que bom te ver viva”, da diretora Lucia Murat. O primeiro, já mais conhecido do público, é exibido com frequência em canais da TV paga, como o Canal Brasil. Já o filme de Lucia, até então, não era possível encontrar em nenhuma plataforma.
Apesar de abordarem o mesmo contexto político, os filmes retratam diferentes situações da luta contra a ditadura. Enquanto o filme de Bruno Barreto narra os acontecimentos do sequestro do embaixador americano, o filme de Lucia Murat mescla depoimentos reais, contando ainda com um monólogo de Irene Ravache interpretando uma personagem anônima, que seria uma mistura de todas essas depoentes do filme.
Sempre que o assunto do golpe é abordado, existe um certo bloqueio referente às torturas cometidas nesse período. Mesmo em núcleos onde há o costume de debater e refletir sobre a ditadura, como em grupos de esquerda ou grupos estudantis, quando se fala sobre tortura, ainda é de maneira muito velada, como se houvesse um tabu envolvendo o tema.
Na maioria dos relatos, as mulheres contam sobre o medo que as pessoas possuem de tocar nesse assunto com elas e, até mesmo, o medo delas próprias. Existe, no imaginário coletivo, a ideia de que os torturados são pessoas com marcas aparentes em seus corpos, deficientes físicos ou com problemas psiquiátricos-comportamentais, resultados dessa violência. Não se espera que essas pessoas tenham, com todas as dificuldades e traumas, constituído suas famílias, sejam formadas e possuam empregos. Que elas vivam uma vida normal.
Para além da abordagem da visão sobre a tortura, o documentário também levanta debates e questionamentos sobre a questão de gênero no uso dessa tortura. Para as mulheres, essa experiência passava a ser ainda mais dolorosa por causa dos abusos sexuais cometidos.
Um fato interessante entre as diferenças de torturas aplicadas nos homens e nas mulheres era o uso dos filhos e outros familiares para afetar as mulheres. Durante a sessão de tortura, os agentes levavam os filhos das vítimas para que as vissem naquela situação. Ou seja, aqui a maternidade também é posta em jogo. E mesmo depois de passados anos do fim da ditadura, essas mulheres enfrentam um grande bloqueio e vergonha para falar do assunto com seus filhos. É como se essa parte de suas vidas devesse ser bloqueada e proibida dentro do ambiente familiar.
Apesar de terem sofrido abusos de diversos tipos, em alguns relatos, as entrevistadas enfatizam um ponto em comum: o sentimento de ter um filho após ou até mesmo durante o período em que estiveram presas. Se o Estado tentava de todas as formas acabar com a vida e dignidade delas, a resposta que elas davam era resistindo e, ainda por cima, colocando outra vida no mundo. Enquanto eles simbolizavam a morte, elas representavam a vida.
O intuito da diretora passa a ser, então, uma tentativa de ressignificar os acontecimentos e, de certa forma, o que é ser mulher. Enquanto somos apresentados aos relatos das vítimas, também passamos a conhecer a vida que construíram após o fim do regime militar. Como elas conseguiram romper com os traumas e tomar conta de seus destinos.
A violência sexual é até hoje cometida corriqueiramente contra as mulheres. Para essas vítimas, a ideia que se tem é de que seus corpos são propriedades não delas, mas dos homens e, nesse caso da ditadura, do Estado.
Passaram-se 60 anos desde o golpe e nenhum torturador foi julgado pelos crimes cometidos. Foram dezenas de mortos e milhares de torturados, além dos desaparecidos. Famílias foram destruídas, separadas e convivem com o trauma até hoje. O que parece é que, de certa forma, todos os criminosos envolvidos tiveram seus crimes perdoados e, por outro lado, as vítimas continuam sendo vistas como “terroristas”.