Numa sociedade orientada para o consumo e extremamente mediatizada, a nossa conceção da realidade baseia-se, em grande parte, nas histórias produzidas e divulgadas pelos meios de comunicação social. O debate sobre a mulher e sobre a sua inferiorização na sociedade torna-se cada vez mais importante, sobretudo porque, apesar das grandes conquistas, ainda se observa uma enorme discrepância face à representação que se tem do homem e da mulher no ecrã. Um bom exemplo disso são as comédias românticas, que resumem a mulher ou a bens materiais, ou a um homem, apresentando uma visão heteronormativa das relações e definindo binariamente os papeis de género.
A representação de diferentes géneros, grupos sociais e minorias étnicas nos meios de comunicação é um reflexo dos valores da sociedade, ao mesmo tempo que é um construtor de sentido para a visão que a sociedade tem desses grupos. Estamos perante um círculo vicioso, no qual as representações feitas nos média retroalimentam a posição dessas pessoas na sociedade, o que continua a influenciar as representações mediáticas.
No audiovisual, o retrato das populações racializadas acontece segundo o olhar e a perspetiva do homem branco, o que reforça os estereótipos racistas existentes na sociedade, sendo a indústria cinematográfica, o produto do racismo institucional. A falta de uma representação fidedigna da mulher negra no cinema, cuja imagem é associada a um objeto ou recai em apresentações extremamente sexualizadas, deve-se ao facto de que, mesmo na própria discussão, quando se fala de género não se inclui na conversa as mulheres negras.
É especialmente preocupante a sub-representação das mulheres negras nos filmes, uma vez que estas continuam associadas a temas racistas e sexistas.
A interseção entre raça e género e a sua representação no cinema, constroem narrativas e imagens que ditam a forma como os diferentes grupos agem e interagem socialmente. Neste ponto, a questão não se baseia somente no machismo ou no racismo, mas num entrecruzar das duas problemáticas, o que acaba por apagar ainda mais estes sujeitos da esfera e da discussão pública.
Para compreendemos melhor a representação da mulher negra no ecrã, e de que forma o racismo estrutural e o machismo afetam estas representações, escolhi como caso de estudo a série Dear White People. Lançada na Netflix em 2017, a série é revolucionária por trazer um elenco maioritariamente negro e por nos demonstrar os efeitos do racismo na comunidade negra. É ainda mais importante por colocar como personagens principais mulheres, e assim conseguir trazer para a discussão pública o papel da mulher negra na sociedade.
A série procura demonstrar uma compreensão mais alargada do racismo e dos seus efeitos na própria comunidade utilizando como personagens de destaque um grupo de estudantes negros que se relacionam de formas diferentes com a sua cor e com o preconceito que sofrem. Demonstra-nos ainda de que forma a cor de pele pode moldar a nossa identidade e como as experiências interseccionais moldam as lutas dos personagens levando-os a questionar “o que significa ser uma mulher negra e apaixonada por um homem branco”; “ser homossexual e negro”, entre outros temas.
Dear White People destaca de que forma as diferentes experiências de opressão convergem para produzir diferentes realidades para as personagens.
Sam, a personagem principal da narrativa, é locutora de um programa de rádio e demonstra uma personalidade militante como forma de provar que pertence à comunidade negra. Ela experiencia o que podemos chamar de racismo internalizado, maioritariamente pela sua identidade birracial. O problema durante a série desenvolve-se em redor da sua identidade e da tentativa de Sam se afirmar na comunidade negra.
Coco, por sua vez, tem o seu primeiro encontro com o racismo na infância quando, ao brincar com um grupo de amigas, uma das colegas diz-lhe para levar a boneca “mais feia”, neste caso a única boneca negra na caixa de brinquedos. As experiências de Coco modelam a compreensão que ela tem da sua cor e da beleza; estas também influenciam o sentimento de raiva que esta tem relativamente ao privilégio de cor que Sam usufrui.
Samantha e Coco são rivais na série devido às experiências que tiveram e da interpretação que fizeram dos quadros de colorismo, racismo e interseccionalidade a que estiveram sujeitas. A rivalidade feminina não se resume à luta por um homem ou por popularidade, mas às inseguranças criadas pelo sistema racista da sociedade. Se no primeiro ano da universidade, as duas são melhores amigas e o apoio uma da outra, ao longo do ano letivo as duas começam-se a afastar na medida em que Sam começa a querer provar a sua cor e o seu ativismo, e Coco passa a lutar para cumprir o seu sonho de ir para a Faculdade e arranjar um marido inserindo-se em dinâmicas sociais aceites pelos brancos. Esta rivalidade acaba quando Sam aceita o seu privilégio, fazendo com que a relação entre as duas personagens acabe com uma nota positiva, o que é importante para a representação negra das mulheres na TV.
Mais que um problema de raça, a série aborda também o género e os movimentos feministas, não descurando o conflito existente entre o feminismo branco e o feminismo negro.
Concluímos, assim, que a representação da mulher negra no cinema é problemática, pois trespassa duas categorias sub-representadas e inferiorizadas socialmente: a mulher (género) e as pessoas de cor (raça). Em Dear White People, acompanhamos a experiência de estudantes negros face ao racismo estrutural e institucional que estes enfrentam, dando relevância às três personagens femininas principais de forma a perceber que, para além da raça, a série também aborda o género e os movimentos feministas. Através de diferentes cenas e interações, a série demonstra de que forma o racismo afeta a posição das mulheres negras na sociedade e a sua relação com o feminismo.
Podemos assim concluir que a representação da mulher negra no cinema, recai na sub-representação que estas têm no panorama social e cultural, sobretudo devido à interseccionalidade de duas problemáticas inferiorizadas como o género e a raça.