“Ela disse” (She Said) é o mais recente filme de um gênero de cinema importante, e que já nos deu excelentes obras ao longo dos últimos 50 anos: filmes sobre investigação jornalística, baseado em fatos reais.

Em tempos em que a fronteira entre ficção e realidade, entre informação e entretenimento estão tão difusas, é importante percebermos que a arte pode mostrar-nos os verdadeiros papéis de cada meio. Graças aos deuses do cinema temos exemplos de ótimos filmes sobre grandes e importantes narrativas jornalísticas.

Eu estabeleço esse período, porque há quase 50 anos foi lançado o mais icônico dos filmes do gênero: “Todos os Homens do Presidente” (All the President´s Men), de 1976, dirigido por Alan J. Pakula, que narra a investigação do Washington Post sobre a invasão da sede do Partido Democrata em 1972, no período que antecedeu à reeleição do então presidente americano, o republicano Richard Nixon.

A investigação conduzida por dois repórteres, Bob Woodward e Carl Bernstein, culminou com a renúncia de Nixon após a comprovação de seu envolvimento no caso. A série de reportagens resultou num livro escrito pelos dois, que serviu de base para o roteiro do filme. Até hoje “Todos os Homens do Presidente” é um marco do cinema e inspira jovens jornalistas em todo o mundo. A frase “Follow the Money” (siga o dinheiro) que serviu de fio condutor da narrativa (e da própria investigação) é uma das mais famosas citações do cinema, e é mantra para qualquer apuração jornalística desde então.

O filme também lançou ao estrelato dois jovens promissores atores americanos: Dustin Hoffman e Robert Redford, que interpretaram respectivamente Woodward e Bernstein. Com um trabalho de atuação, direção e roteiro primorosos, o filme nos prende na cadeira, como um thriller de suspense, embora já saibamos de antemão o desfecho.

O jornalismo tem sido uma fonte de inspiração e tema para diversos filmes de sucesso. Talvez porque o bom jornalismo é um produto narrativo. Nele deve expor de forma clara e precisa o fato, isto é, o que aconteceu e porque ele é relevante para o leitor/espectador. A narrativa da matéria jornalística tem que apresentar de forma concisa as motivações, os personagens, e o desenrolar da história, seu desfecho.

A grande diferença está aí, no desfecho. A matéria jornalística não encerra a história. Ela coloca nas mãos do leitor e da sociedade os elementos para que esta tome as decisões decorrentes daquela exposição. De forma simplificada, a série de matérias que Bob Woodward e Carl Bernstein fizeram sobre a interferência política e corrupção do governo Nixon foram o diagnóstico do problema. A repercussão da matéria levou ao indiciamento dos homens do presidente Nixon e à sua renúncia.

Os bons filmes sobre o tema jornalístico geralmente são thrillers, que desenvolvem uma investigação de consequências extremas, apresentam personagens fortes, íntegros, que têm uma jornada de herói: da descoberta do problema, exposição e superação das ameaças e perigos, do enfrentamento de poderosos, e, por fim, do triunfo.

Essa poderia ser a “storyline” de vários filmes que obtiveram grande sucesso de crítica e bilheteria. Veja por exemplo o vencedor dos Óscares de melhor filme e roteiro original de 2015, “Spotlight” onde uma equipe de jornalistas investigativos do jornal Boston Globe puxa um novelo histórias de abusos sexuais cometidos por padres da igreja Católica, acobertados pela arquidiocese de Boston por anos. Todo o caminho da investigação, os dramas pessoais dos jornalistas, o enfrentamento dos poderosos são construídos num roteiro excepcional de Josh Singer e Tom McCarthy, este também o realizador do filme.

Quatro anos depois, em 2019, chega “Bombshell” sobre um trio de jornalistas da Fox News que denunciam o assédio sexual sofrido pelas mulheres funcionárias nos gabinetes da emissora. O trio, formado pela antiga âncora Gretchen Carlson (Nicole Kidman), pela prestigiadíssima âncora naquele momento Megyn Kelly (Charlize Theron) e pela ambiciosa produtora Kayla Pospisil (Margot Robbie), tem que enfrentar uma enorme pressão por parte da rede e convencer outras colegas que também sofreram abusos a iniciar um processo e levar aos tribunais o poderoso Roger Ailes, CEO da divisão de jornalismo da Fox.

Até o mestre Steven Spielberg deu a sua contribuição ao gênero em “The Post” de 2017, ao explorar o caso dos chamados Pentagon Papers, documentos secretos do governo americano que caíram nas mão do Washington Post. Tais documentos militares concluíam a impossibilidade dos Estados Unidos vencerem a Guerra do Vietnã, anos antes de seu fim. E mesmo assim, continuaram a enviar tropas para a frente de batalha e provocar a morte de milhares de jovens soldados. O filme trata do dilema do jornal em publicar ou não a história, num momento delicado em que passava por um processo de sucessão após a perda de seu fundador. A então dona do jornal, Kay Graham, interpretada pela sempre notável Meryl Streep, sem muita experiência e insegura num universo masculino, conta apenas com o apoio e amizade de seu editor-chefe Ben Bradlee (Tom Hanks).

O dilema ético jornalístico entre publicar a verdade da história, e as consequências empresariais que poderiam levar ao fechamento do jornal são o tema principal deste filme, que também discute o papel da mulher e seu reconhecimento na sociedade americana do final dos anos 60. É um filme imperdível! Curiosamente, alguns anos mais tarde o Washington Post e Ben Bradlee estariam no centro da história retratada em “Todos os Homens do Presidente”.

O último filme que eu gostaria de comentar sobre o tema jornalismo e histórias reais é o “Ela disse” (She Said) de 2022 sobre o qual eu iniciei este artigo. O filme conta a história de duas jornalistas do New York Times, Jodi Kantor e Megan Twohey, que iniciam uma investigação sobre casos de abuso sexual em Hollywood. Por décadas favores sexuais foram uma prática comum na capital do cinema. Jovens atrizes, para conseguir papéis de destaque em filmes e para deslancharem em suas carreiras, eram obrigadas a prestar favores a produtores inescrupulosos.

A matéria do NYT foca nos abusos cometidos pelo então todo poderoso produtor de Hollywood Harvey Weinstein, cujo currículo tem projetos premiadíssimos como “Shakespeare Apaixonado” (Shakespeare in Love), “O Discurso do Rei” (The King´s Speech), “O Aviador” (The Aviator), “Kill Bill”, a trilogia do “Senhor do Anéis” (Lord of the Rings), “Gangues de Nova York” (Gangs of New York), “Chicago” entre outros. Weinstein era um produtor poderosíssimo, comparado aos grandes da história do cinema americano da era de ouro de Hollywood.

As jornalistas enfrentaram toda uma indústria e o receio das atrizes, vítimas dos abusos, em testemunharem contra o maior dos magnatas do cinema da época. A matéria foi o estopim para a disseminação do movimento “Me Too”, que assiste vítimas de abusos sexuais. É mais um filme daqueles que, mesmo conhecendo o desfecho, nós também sofremos com as protagonistas pela justiça e torcemos por elas. Com ótimas interpretações de Carey Mulligan e Zoe Kazan, “She Said” é um filme para aqueles que curtem os bastidores do jornalismo, sendo inclusive o primeiro filme rodado não em estúdio, mas na real redação do New York Times.

O jornalismo já rendeu também filmes deliciosos, sérios e cômicos de ficção. Para quem gosta do tema, e que rir um bocado, eu recomendo que assistam a “A Primeira Página” (The Front Page) de 1974, estrelado pelos hilariantes Jack Lemmon e Walter Mathau. O filme conta as aventuras de uma dupla formada pelo repórter (Lemmon) que tenta se despedir do jornal para casar-se, e pelo seu editor (Mathau) que faz de tudo para que ele não vá embora, em meio a uma cobertura de um enforcamento. É para rir do início ao fim, especialmente pelos afiados diálogos escritos pelo mestre Billy Wilder, também diretor do filme.

Eu não poderia deixar de mencionar “O Jornal” (The Paper) de 1994, com Michael Keaton, Glen Close, Robert Duvall e um excelente elenco sobre um tabloide nova iorquino e a pressão por furos de reportagem.

Também não deixo de homenagear um dos melhores filmes do gênero, sobre os bastidores do telejornalismo “Broadcast News” de 1987. Escrito, produzido e dirigido pelo versátil James L. Brooks, um artista que já nos entregou joias como “Laços de Ternura“ (Terms of Endearment), “Melhor Impossível” (As Good as it Gets) e a série “Os Simpsons”. Brooks é um ícone do cinema e da televisão americana, e em “Broadcast News” ele nos conta a história de três personagens: o âncora bonitão, mas vazio (William Hurt), a produtora hiperativa (Holly Hunter) e o jornalista excepcional, mas sem autoestima (Albert Brooks).

As histórias dos três irão se entrelaçar com doses de drama e comédia. É um filme de texto afiado, rápido, como a pressão de se colocar no ar um telejornal diário. O filme foi indicado em 1988 a sete Óscares, incluindo o de melhor filme. Não ganhou nenhum, pois aquele foi o ano de “O Último Imperador” de Bertolucci, mas isso não o desmerece ou o retira da lista dos melhores filmes de todos os tempos.

A televisão, especialmente a americana, tem utilizado as redações dos jornais há anos como pano de fundo para séries cômicas ou dramáticas. Em 2012, a HBO lançou uma série espetacular, ousada para a época e ainda super atual: “The Newsroom”. São 3 temporadas e 25 episódios que relatam o dia a dia de uma equipe de telejornalismo de uma emissora fictícia, liderada pelo âncora Will McAvoy, talvez a melhor interpretação do ator Jeff Daniels em sua carreira, e suportado por um elenco primoroso. A busca pela verdade como princípio básico do jornalismo, os dilemas éticos, a pressão dos patrocinadores do jornal, os dramas de cada integrante da equipe são maravilhosamente combinados, resultando um produto de grande carga dramática.

A série leva a assinatura de Aaron Sorkin, um mestre do roteiro, vencedor do Óscar em 2011 por “A Rede Social” (The Social Network) e indicado outras 3 vezes, e autor de diálogos vibrantes como no filme “Uma Questão de Honra” (A Few Good Men) ou na série “West Wing”. O primeiro episódio da primeira temporada por si já é um soco no estômago, um dos melhores episódios da televisão. Nele o personagem de Jeff Daniels explica para uma aspirante a jornalista numa palestra porque os Estados Unidos não são a maior nação do mundo (Isto já em 2011). A partir daí estabelecemos qual o papel da mídia nessa decadência. É pesado, mas também é esclarecedor.

Respondidas as perguntas de “o quê, quem, como, quando e porquê” como um boa matéria jornalística deve ser, vemos as semelhanças e diferenças em contar uma história real ou fictícia, no jornal ou no cinema, e como podemos nos encantar com os dramas, aflições, felicidades e conquistas dos outros. No fundo, tudo tem a ver com empatia. E enquanto houver boas histórias na vida real e bons jornalistas e realizadores, nós, os amantes do cinema teremos um imenso prazer em procurar nosso lugar numa sala escura... Ou apertarmos o “play”.