“Não aguento mais”, “O pai das crianças”, “Irmão de trincheira”, “Marido da Cecília”, “Carta de um militar”, “Policial ferido”, etc., são alguns dos mais curtidos hits de Rei Bravo 1 (doravante RB), rapper moçambicano, conhecido por retractar, de forma nua e crua e coadjuvado por um linguajar oscilante entre o calão e corrente, a realidade político-social de Moçambique e não só.
A música em pauta neste artigo, “Policial ferido”, retracta a história de um casal, cuja parceira trai o seu enamorado, que se encontrava em formação paramilitar (em Matalane 1), e este descobre que a parceira está grávida de três meses, quando esteve, durante seis meses, na formação, durante a qual não se encontravam. Vale lembrar que, durante a produção deste artigo, não tive acesso à letra da música, tendo-me, para efeitos de interpretação, recorrido à transcrição.
Rei Bravo inicia o seu “Policial ferido” apelando ao garçom, após a descoberta da gravidez da sua parceira, que lhe abra a porta do bar, pois que deseja, como de praxe na juventude e não só, afogar as suas mágoas nos copos (em bebedeiras), quando diz:
Garçom, se visses o que eu vi
se visses o que a dama (parceira) fez para mim (...)
não fecharias o bar (...) eu juro que não fecharias (...)(RB, 2023)
Após o exórdio, parte, na segunda estrofe, à explicitação, quando diz:
(..) eu sei que queres fechar o bar
eu sei que está na hora
eu sei que já 'tá tarde
mas eu não quero ir-me embora
tudo o que eu sinto agora é só vontade de chorar
garçom, senta aqui, deixa-me contar-te a minha história
voltei de Matalane num curso de seis meses
ecografia diz que minha “dama” (parceira) está grávida de três meses
então pergunto: será que aconteceu alguma magia?
será que lhe engravidaram com os anjos
como aconteceu com Maria?
desculpa lá, garçom, mas eu não sou José
brother, eu não quero pecar, mas eu tenho pouca fé
ela disse que a “cena” é minha, mas, brô, não faz sentido, do jeito que eu amo aquela miúda, como é que faz isso comigo?
Garçom, enche esse copo enquanto a gente conversa
eu sei que estás aborrecido, mas só hoje me entenda
eu descobri que sou um granda “corno”
rei do gado da zona
só de pensar que outro gajo encostou naquela (...)(RB, 2023)
Ora, nesta estrofe, o sujeito poético procura expurgar o seu sentimento com relação à traição perpetrada pela sua parceira, mas, ao mesmo tempo, leva o leitor-ouvinte à reflexão: “quantas Cecílias existem espalhadas pelo mundo e, igualmente, quantos homens como o sujeito poético sofrem/enfrentam esta realidade? Ademais, se outrora (senão até aos dias que correm), comportamentos similares aos de Cecília eram típicos de homens, não estariam, as Cecílias, a ‘pagar pela mesma moeda’?”.
Estamos perante uma contra-sociedade, gente que, para Serra (2003:19-20), apud Das Neves (2015), o seu horizonte é o dia a dia, o seu território é o da astúcia (…) dos golpes rápidos, da vertigem dos momentos, dos cálculos de circunstância (...) da prostituição, da droga, das regras, enfim, de uma autêntica “contra-sociedade”. [itálico nosso].
Aliás, na música em pauta, mais do que uma guerra que envolve os cônjuges, o sujeito poético vai longe ao asseverar, metaforicamente, que este fenómeno, muitas vezes, é compactuado por mais gente (a família alargada), quando remata:
Extrovertida, eu te amava, por ti dava a vida
ainda não apagaste o meu número?
você é bandida
tratei-te como princesa, mas vivias como ninja
esse teu teatro não me engana, não finjas
podes-te armar em Julieta, mas não serei mais o teu Romeu
não sei se percebeste, mas este jogo você perdeu
vão-se lixar todos vocês, teu pai, tua mãe, teus irmãos, tua tia
vocês todos compactuaram com essa toda gatunagem
quadrilha de mentirosos, gatunos da malandragem
eu não guardo rancor, mas o carma nunca falha
um dia vais-te lembrar de mim, e eu vou-te ver com falhas
assim, os teus pais chamavam o gajo de filho
assim também olhavas para ele com o mesmo brilho
tuas amigas, teus irmãos, chamavam ele de cunha
desliga essa chamada e me esqueça, sua gatuna (...)(RB, 2023)
Muito se pode ainda dizer sobre a música em pauta, entretanto, fica claro, nas entrelinhas desta letra, que RB, sem se preocupar com ornatos linguísticos e, talvez, por isso a naturalidade com que rectrata o real e o social moçambicanos, representa-nos, com bravura, a mulher (Cecília) que, por inferência, é a representação não só da imagem feminina como também da masculina e, por que não, de uma sociedade inteira? Vale ainda lembrar ao leitor que “não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade.” (Aristóteles, 2003)
Bibliografia
Aristotéles. (2003). Poética, 7ªed., Lisboa. Volume VIII. Macuáca, Albino, Manjante, Lucílio e das Neves, Osvaldo (2015). Literatura Moçambicana Da Ameaça do Esquecimento à Urgência do Resgate, Maputo: Alcance Editores.
1 Escola Prática da Polícia da República de Moçambique.