Não é algo novo na história do Brasil a produção de narrativas por parte da grande mídia que banalizam a violência nas periferias das grandes cidades. Tal fato legítima a criação de uma visão preconceituosa sobre os jovens periféricos que muitas vezes são reproduzidas dentro de suas próprias comunidades. Essa representação, distorcida e estigmatizada, justifica perante a sociedade o uso da violência pelo poder público sob a égide da ordem a da segurança pública.

Movimentos de resistência, como o Hip Hop e a Literatura Marginal, denunciam essa realidade e mostram a vitalidade social e as potências de vida de uma juventude que desafia o poder repressor. Estes movimentos escancaram a violência e a desigualdade social, mas, ao mesmo tempo, são capazes de promover modos de existências singulares, cheios de criatividade e de potência de vida.

Um notável exemplo de potência criativa e de resistência é Coletivo Vozes Periféricas, formado por doze jovens das regiões de Heliópolis e do Ceasa (ou Helipa e Ceasa City, como preferem chamar), respectivamente na zona sul e oeste da capital paulista. O grupo, criado para propor uma narrativa autêntica que destaque a juventude negra, periférica e LGBTQIA+, se preocupa em deixar um legado histórico que seja capaz de questionar e de oferecer alternativas para as narrativas tradicionais e opressoras veiculadas pelos grandes conglomerados produtores de informação.

De acordo com a definição dada por eles mesmos, o Vozes Periféricas se define como "uma coletividade artística, uma comunidade de ação, feita por e para a juventude, em que estratégias para buscar saídas ganharam contorno e materialidade." Em outras palavras, trata-se de um "projeto de conexão entre jovens da quebrada para trocar experiências, ocupar a mente e registrar historicamente."

Formado por Andressa Bonfin, Arthur Frias, Beatriz Lira, Caroline Ribeiro, Gabriel Feitosa (Simba), Gabriel Ferreira, Jovana Basílio, Karoline Aparecida, Luam Marques Anastácio, Matheus Armando, Matheus Filho e Ramon Santos, o coletivo utiliza o Instagram para difundir suas criações.

Com quatro anos de atuação, o Coletivo Vozes Periféricas se organiza por meio de encontros virtuais. Nesses espaços, seus membros podem interagir com a finalidades de trocar experiências, combinar habilidades e estabelecer um lugar propício ao aprendizado, ao crescimento pessoal e, sobretudo, ao acolhimento. Para esses jovens, a arte e a cultura não são apenas formas de se expressar, mas constituem-se como práticas embricas diretamente à vida cotidiana, refletindo a transformação social que tanto almejam.

Através de uma abordagem sensível, as ilustrações e os textos refletem emoções que afetam a vida diária de muitos jovens, no entanto, não deixam de explorar as experiências que moldam a relação de uma juventude marginalizada com o seu entorno, com a cidade que os exclui e com o espaço urbano que os segrega. Esse olhar abrangente revela a complexidade das vivências e das interações com o mundo que os rodeia e quase sempre os oprime.

Em "Assédio", por exemplo, a escritora Karoline dá voz a uma poderosa representação de um grito coletivo de milhares de mulheres que enfrentam diariamente diversos tipos de comportamentos abusivos. Por meio de uma narrativa incisiva, a autora afirma: "Não somos só um corpo, somos inteligência pra abrir a boca, nos unir e derrubar vocês." Karolina expressa a frustração e a resistência dessas mulheres convocando a sociedade a enfrentar e transformar uma realidade abusiva que persiste.

Por outro lado, em "Plaft! Pooh! Pooh! Buum!", obra de Lisbeth Ananse com ilustrações de Ramon, a poesia aborda injustiças sociais e raciais com elementos da ancestralidade africana e sonhos interrompidos. De maneira singular, a narrativa produzida por Lisbeth integra elementos da ancestralidade africana sem deixar de refletir sobre sonhos futuros que, de uma maneira ou de outra, acabam interrompidos.

Gabriel Feitosa, em um texto sem título, discute como o estranhamento e a existência do outro podem gerar conflitos. Utilizando uma linguagem própria das redes sociais, Feitosa aborda de maneira sagaz a complexidade das interações humanas e a necessidade intrínseca de autoafirmação. Apesar de curto, seu texto oferece uma reflexão sobre como as tensões geradas pelo encontro com o diferente pode revelar aspectos inerentes da condição humana e das relações sociais.

Chama atenção a ilustração que Matheus Armando faz para o poema de Gabriel Feitosa, trazendo novas camadas de interpretação para o texto. Com traços realistas, o artista traz a figura de uma caveira com uma placa com as inscrições “Idade: Sexo: Cor:”, sem preenchimento. A imagem nos faz pensar que, em essência, características físicas que definem nossa identidade, não significam nada ao nos despirmos dela. Além disso, a assinatura do artista no meio do desenho também é reveladora, destacando a própria questão da autoestima, levantada no texto.

As ilustrações do coletivo, tão impactantes quanto sua própria produção escrita, revelam a assimilação de diferentes culturas e estilos. Os desenhos de Matheus Filho, influenciados por mangás e animes, e as linhas de Ramon, que evocam desde os cordéis nordestinos até histórias em quadrinhos contemporâneas, exemplificam essa diversidade.

Os jovens do coletivo revisitam pontos fundamentais da produção artística contemporânea, abordando temas como o uso de drogas, questões de saúde mental e a liberdade sexual. No entanto, essas temáticas são vistas sob uma perspectiva singular, que reflete as vivências únicas dos membros do grupo. Através de suas obras, percebemos claramente novas formas de entender e discutir esses assuntos, contribuindo para um diálogo mais amplo e inclusivo.

As drogas, antes idealizadas pela geração hippie e beatnik como um meio de liberação mental, são agora vistas como um fator de degradação física e social. Os problemas de saúde mental, outrora romantizados pelos jovens burgueses do século passado como sinônimo de genialidade, são apresentados como reflexos de uma realidade excludente e ansiogênica. A sexualização, por sua vez, não é mais percebida como uma experimentação hedonista, característica das gerações dos anos 1970 e 1980, mas como uma expressão da diversidade humana.

Desse ponto de vista, esta geração, que sofreu e ainda sofre as consequências de políticas públicas mal formuladas, mostra-se mais madura e consciente. Diferente das gerações anteriores, que estavam dispostas a negociar e até mesmo a ceder, esta acredita que concessões já foram feitas e que há espaço para retrocessos.

Por fim, é necessário dizer que o trabalho do Coletivo Vozes Periféricas se posiciona como uma produção textual e visual inserida no contexto da arte e da cultura marginal. Trata-se de uma produção afiada, desafiadora e ousada, que expõe as mazelas da comunidade, ao mesmo tempo em traz sensibilidade e frescor, qualidades estas que apenas escritores e artistas desse contexto podem nos oferecer.