Aqui, entre nós, não é muito comum que um álbum se vinque e tome sua forma a partir do título. “Venho de Longe”, de Elvira Viegas, reforça logo a construção do sentido musical e enriquece o processo conceptivo, estético (e, na expetativa, melódico) das 15 músicas que a compõem. O álbum dá continuidade à evocação de referências das suas vivências que são sinónimos de cal os, lágrimas, pesares e tentativas pregações de moral e patriotismo.
E é sobre isso que quero aqui abordar. Elvira faz, neste 2024, 50 anos de carreira e 69 de idade, a completar em outubro próximo. Tem cinco álbuns gravados, “Nfzixikala vitu”, “Tlanga upimela”, “The best of Elvira Viegas”, “Venho de Longe” e “Ora Chegou”, que deixam sempre a sua fragância melódica por onde ecoam. São quatro vidas que me interessam analisar, mas hoje, nesta extensa introdução, interessa-me recuar no tempo e, desde o início, seguir essas pegadas feitas em 50 anos de música.
“Venho de Longe” (uma reedição de The best of Elvira Viegas), como sugere o quarto disco, traz, na sua organização, as melhores músicas da cantora, gravadas originalmente em diferentes momentos e circunstâncias. São esses os calos da sua história, de lá longe de onde vem, que, regravadas e alinhadas, compõem o primeiro álbum ousado da cantora, juntando igualmente instrumentistas como Pipas, Stélio Zoe, Carlos Gove, Sacre, e o seu falecido irmão Pacha Viegas.
E sem rodeios: o disco é a mascote da Música Ligeira Moçambicana – um campo que já foi dividido entre ela, Elsa Mangue e Zaida Chongo. Bem, um pouco forçado também por Mingas, embora o seu estilo circunde entre o ligeiro moçambicano e o moçambicano internacional –, que antes mesmo de reeditado, já tinha conquistado reputação na Rádio Moçambique, reafirmou o valor da artista e o reconhecimento que veio também da Rádio França Internacional (RFI), que o atribuiu o seu galardão maior (Prémio Descoberta), no ano de 1987.
Com audácia, e uma dinâmica crescente, sem por isso quebrar a senoide, o álbum conta a história de um país – e seus inquilinos – que prossegue em meio a tantos problemas, sobretudo relacionados às mais básicas dádivas da humanidade: dar amor aos filhos, aos cônjuges, aos vizinhos, ter esperança e perseverança. Por isso, as batidas, misturando uma Marrabenta e Afro-Pop, estimulam a nostalgia ao ressoar do teclado característico de Pipas. As composições são modestas, interpretadas com um soltar de voz, em timbre grave: o equivalente melódico da fleuma de poesia cantada. Pois canta com alma, mestria, simplicidade e às vezes complexidade! E não será coincidência qualquer semelhança com Elsa Mangue, a quem ficam também reverentes nostalgias. As duas são feitas de poesia!
Transportando para estúdio a intensidade do ao vivo, Elvira Viegas reafirma-se no álbum em “Errei, pequei” e, abusando da sua criatividade, mistura elementos comuns de diferentes estilos do Afro-Pop, o que dificulta a sua categorização e, ao mesmo tempo, apresenta um material agradavelmente inusitado aos seus ouvintes. A música é uma obra completa, no sentido de que nenhum instrumento envolvido seria muito coerente se fosse ouvido sozinho. A bateria e a guitarra acompanham a voz, estonteante, que repetidas vezes clama: “Errei, pequei com o coração ao deixá-lo chorar”.
A música rasga o peito e reverencia a complexidade poética de Elvira. É sobre dor, prazer, paixão? Não, é sobre a aceitação: “Errei, pequei aos olhos dos homens, descobrindo o meu caminho, não pisando a areia movediça”, diz a música, levando à consciência sobre a necessidade de se ser livre e feliz. E a liberdade se espalha numa tonalidade primorosa. A voz está segura e confiante, o som invade o cenário e casa-se com a melodia até tudo explodir num refrão que alivia a tensão e resolve a harmonia com inteligência e bom gosto. “Xikala Vitu”, o mesmo que sem nome, continua aqui a fazer subir o álbum e traz ao arrepio dessa viagem rítmica outros brilhos, outros sentidos. Aqui, Elvira recolhe-se mais, divide seus quatro minutos de dor com Sizaquel e Jenny, que também, no fundo, dão drama à música. Uma melodia que dói, que arrebata e nos traz à memória a covarde moda de assassinatos de parceiras em Moçambique. E questiona: “Como te chamarei se comeste a minha boca? Como te escutarei se grelhaste a minha orelha? Como irei brincar contigo se cozinhaste os meus seios? E as tripas o guisado?”
Elvira deita fertilizante nas suas canções melancólicas, e duas delas espraiam-se mesmo pelas lágrimas. Uma delas, Grito da Criança, é o auge de tudo o que Elvira sente e viveu: uma maratona por toda a sua geografia musical e afetiva, tempestade de bateria e melodia, uma crónica da crueldade do abandono familiar, uma obsessão pela moral e um fatalismo pelo caos que vivemos. A outra música, Coração de Pedra, um choro de outra mulher, é útil porque desmente a falácia de que toda a mulher-mãe é protetora.