No filme “À Meia-Noite Levarei sua Alma (1964)” o sinistro coveiro Zé do Caixão (José Mojica Marins) quer gerar um filho geneticamente perfeito para manter a linhagem de seu sangue. Quando sua mulher falha ao engravidar, Zé decide violentar a mulher de seu melhor amigo. Após o estupro, a moça quer se suicidar para arrastar a alma de Zé do Caixão junto com ela para o mundo dos mortos.
Assustadora, violenta e macabra. A sinopse apenas elabora a ideia central do filme, mas não faz jus ao seu impacto visual. Mojica arriscou alto na realização dele, autointitulado o primeiro do horror brasileiro. Durante toda a narrativa pode-se perceber o despertar de um homem que, guiado por crenças racionais e à tradição, acaba se perdendo em sua própria moralidade e caindo no abismo irônico de seu próprio paradoxo: aquilo que mais odiava é o que vem a se tornar no futuro — uma figura imersa no sobrenatural.
Com elementos da modernidade, a tensão, os dilemas, os limites do tempo são muito desafiados quando analisados mais profundamente. Zé do Caixão, sendo agente funerário, serve como, tal qual o mito grego de Carontes (barqueiro que leva as almas ao submundo de Hades), um intermediário entre vivos e mortos. A finitude, a fragilidade da vida humana e toda a sua decomposição e podridão, fazem parte do único universo existente para ele.
Mojica define seu personagem, em um primeiro momento, como um cético racional. Ele não vê o sobrenatural, logo, não crê. Se para Zé tudo que existe só existe se for visto, é compreensível quando entra em estado de transe ao ver uma procissão das almas penadas. Com a crença na única certeza de sua vida abalada, a loucura cria raízes em seu ser (alimentada pela cena na qual toma cachaça de um despacho de macumba), tornando-se a personalidade Zé do Caixão.
Ao assumir sua verdadeira personalidade escondida sob o ceticismo, aquele homem cruel, sádico, blasfemador, violento e sem qualquer tipo de remorso, Zé do Caixão faz o filme adentrar no horror trash que chocou espectadores e tornou memorável o nome de seu intérprete.
O objetivo torna-se claro e, já foi inúmeras vezes discutido em longas: combater e vencer a morte, utilizando da própria natureza para tal. Subverter o que é “divinamente” criado e com uma função específica para o seu bel prazer. Sem nenhum pudor para alcançar seu plano o fracasso descontrola suas ações e o leva para um tom animalesco e de um instinto brutal. Abandona sua mulher estéril e estupra a noiva de seu amigo, tudo sob o pretexto de conseguir um filho perfeito.
É aqui que Mojica aprofunda o horror trash e o torna muito mais do que apenas o grotesco. Trata-se do choque de ideias, do embate entre o lado divino e demoníaco do ser humano, do paradoxo entre a bruta realidade e o místico sobrenatural, que se entrelaçam e formam a criação de toda a existência.
A linguagem violenta sendo a única que Zé do Caixão conhece e pratica, é a mesma resposta que ele receberá em seu fim. Quando a mulher se suicida, ela reivindica seu corpo novamente, se livrando do fruto, do descendente do homem que a estuprou. O baque com a falta de poder sob a situação e o constante medo de uma vingança além da tumba são fatores suficientes para elevarem o protagonista à condição de loucura extrema. Ao tentar ganhar da morte, ele vai ao seu encontro. Nada mais justo se não, encerrar o filme com o encontro entre ambos, um retorno à eterna certeza da vida: o seu inevitável fim.
Formador de opiniões dúbias entre os espectadores, Mojica é um artista controverso. Alguns o consideram um gênio incontestável, capaz de transformar o nojento e grotesco, aquilo que nunca seria considerado cinema de qualidade, em uma narrativa complexa e recheada de significados e referências ocultas. Outros o chamam de louco, perturbado e incapaz de compreender o que é cinema.
Embora algumas críticas ao seu trabalho tenham relação com o ideal conservador e elitista de que cinema só pode ser considerado como tal se seguir uma linha de raciocínio e certas regras, Mojica provou seu valor com sua larga carreira. Ávido por liberdade, inspirava uma espécie de anarquia do status e agia tal qual um bicho solto pela primeira vez em seu habitat natural. Ele nascera para ser artista, embora ser um artista padrão não era suficiente, era necessário transgredir.
Animalesco, antropofágico, explícito, trash, terror caipira e suburbano, tortura alusivas aos tempos de ditadura e bases fortes do expressionismo alemão são algumas das expressões associadas à sua filmografia, especialmente nos anos de Cinema Marginal. Ele surpreendeu ao recriar no Brasil e com baixo orçamento, os efeitos especiais semelhantes às grandes produções hollywoodianas. Mais do que isso, ele foi imortalizado na figura do Zé do Caixão e seu personagem ganhou vida nas mãos de outros criadores. Quase semelhante a um fenômeno da natureza, o arrebatador que assombrava o inconsciente e o consciente do espectador, desejosos por mais conteúdo, ainda que assustados com o quão fortes e performáticas eram as cenas.
Para uma vertente que buscava sua própria identidade, uma maior inovação, Mojica foi um suspiro de liberdade e, ao mesmo tempo, um mergulho no submundo obscuro do cinema de horror, até então muitíssimo pouco explorado no Brasil. Sua criatividade compensava suas dificuldades com baixo orçamento, o transformando em um exemplo digno de ser citado na história do Cinema Marginal.
Sem sombra de dúvidas o grande nome do horror nacional, José Mojica Marins serve como base, referência e inspiração para qualquer artista sucessor que deseja prosseguir no gênero. A filosofia impregnada por Zé do Caixão: a loucura, o desprezo, o deboche, a intolerância, a violência, o delírio, o divino, o diabólico e o sobrenatural ainda ecoam na contemporaneidade, no encantamento que o universo surreal produz no cinema.
De fato, Mojica deixou claro por meio de seus filmes, que a loucura que existe em cada um de nós é a verdadeira chave para o autodescobrimento, e a maneira encontrada por ele de refletir tal informação para o mundo foi chamar a atenção aos desejos mais obscuros da mente humana. Mais do que um simples diretor, Mojica deixa como legado o ensinamento de que a arte surge de onde menos se espera.